Rafael Braga





Sinto muito...

Sinto falta de algo neste espaço.
Sinto falta das palavras nas prateleiras que preenchiam esta parede.
Sinto falta de algo que me lembro, algo que esteve aqui.
Sinto falta da magia, da música, das leituras, das experiências.
Sinto falta de uma amiga.
Sinto aquela falta que faltava, que faltará se faltou.
Falta o que senti.
Sinto o tempo que passou e o tempo que passará.
Sinto o vazio do vazio que vazio será.
Minto o que pinto porque o que sinto nunca pintará.
Mas o que sinto não faltará.

O efeito do defeito - Maria

Parte 8
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     À hora programada o despertador ligou o rádio. Era manhã.

     "... electricas foram resolvidas esta madrugada, enquanto isso, as autoridades continuam as buscas pelo jovem Gaspar Fernandes, de quinze anos, que desaparecera esta noite durante o inexplicável apagão. Mais informações a seguir aos anúncios."

     Maria esticou um braço e desligou o despertador. Permaneceu deitada, acordada, porém de olhos fechados. O seu pensamento estava vazio. A luz da manhã raiava pela janela do seu quarto. Imaginou certa noite. Candeeiros iluminam a avenida de cima a baixo. Ao fundo, do avesso, um carro balança capotado. Maria corre mas a sensação é a mesma: a de estar presa ao asfalto, sem se poder mover para a frente. Num piscar de olhos, Carolina está sob a frente do carro. O carro range em sons de metais e vidros. Maria levanta o carro como se fosse de brincar. Nada a emociona...

     Um ligeiro sufoco fez Maria acordar novamente. Havia adormecido. Passaram cinco minutos apenas. Maria levantou-se e vestiu-se. Desceu até à cozinha.

     - Bom dia - cumprimentou Bernardo, indiferente.
     - Bom dia.

     Bernardo havia saído a noite passada depois de um telefonema, segundo a mãe. Maria sentou-se à mesa, observando os movimentos de Bernardo. Tinha vestido a mesma roupa do dia anterior, o fato cinzento, que por norma, era a sua cor de roupa geral. Caracterizava-se como um homem estranho e sem vida própria.

     - Bernardo...?
     - Sim? - deu-lhe atenção imediata.
     - Precisava de um favor seu.
     - Força.

     Maria relaxou.

     - O Bernardo vai sair agora?
     - Depende.
     - Bem, é que não posso levar a Carolina comigo, por isso...
     - Tudo bem - afirmou num tom como se tivessem mudado o assunto - Ela está a dormir.

     Maria concordou. Tomou o seu leite enquanto olhava para ele, calmo e sem preocupações. Maria não conseguia perceber o que a sua mãe via naquele homem. Era tão reservado e misterioso.

     - A tua mãe contou-me sobre uma mulher que veio cá a casa procurar-te... - Bernardo quebrou o olhar de Maria - e pediu-me que vos vigia-se.

     Maria acenou com a cabeça.

     - Posso saber onde vais?
     - Ao Hospital - Maria respondeu indiferente.

     Bernardo levantou-se e arrumou o seu prato e copo. Lavou as mãos e dirigiu-se para a sala.

     - A tua mãe chega às 14 em ponto. Não te atrases.

     Maria ficara um pouco indignada. Havia, por tanto, um babysitter em casa. Levantou-se e arrumou as suas coisas. Voltou ao quarto e preparou-se para sair o mais rápido possível. Carolina continuava a dormir. E como ela parecia um anjo a dormir. Desceu novamente.

     - Volto já - informou a Bernardo.

     Percorreu a rua até ao final e sentou-se na paragem de autocarros. Não havia esperado muito, um autocarro com o seu destino aproximava-se. "Espero que ela tenha respostas para mim", pensou, "Mas que perguntas terei eu?", reflectiu, "Ela é médica, acho que poderei confiar nela.", "Em quem mais poderei confiar também?", Maria baixou o olhar. O autocarro parou saindo metade dos passageiros. "E o Mateus? O que terá ele? Poderei perguntar-lhe sobre ele?...", Maria perdeu-se nos pensamentos, distraiu-se.

     À entrada do Hospital, Maria começou a sentir o nervosismo aumentar.

     - Olá - chamou a recepcionista.
     - Olá, eu gostaria de falar com uma médica que trabalha neste Hospital.
     - Creio que não seja possível, isso. Estamos na hora de trabalho.
     - Preciso muito de falar com ela - Maria pausou - Foi ela quem me recomendou vir aqui.
     - Sendo assim - interrogou-se - Quem é a médica?
     - Doutora Célia...
     - Sim?

     Maria voltou-se.

     - Maria? Prazer em rever-te - sorriu Célia.
     - Preciso de conversar consigo.

     Célia mostrava-se atarefada entre dois pacientes à saída. Olhou o relógio e fez um sinal para a seguir.

     - Deve ser importante, para teres mentido à recepcionista.
     - Sim... - respondeu envergonhada, enquanto seguia a doutora pelo corredor até ao elevador.

     Ao entrarem no escritório, Célia informou uma enfermeira de que faria uma pausa. Entrou de seguida e assinalou uma cadeira para Maria.

     - Senta-te. Como está a tua irmã?
     - Saudável, agora.
     - Não fazíamos ideia anteontem ou nem teríamos ido a tua casa. O que se passa?
     - Bem... É um pouco sobre isso que lhe quero falar.

     Maria observou atentamente todo o escritório em seu redor enquanto organizava as suas ideias.

     - À minha mãe não lhe agradou muito a ideia de terem ido lá a nossa casa.
     - Oh querida. A culpa foi toda minha. Desculpa-me. Devia ter percebido quando não fui bem-vinda.
     - Peço desculpa, pelo meu pai também...
     - Se te reconfortar, eu terei todo o gosto em falar com a tua mãe e explicar-lhe a situação.
     - Não acho que seja necessário - Maria acenou com a cabeça - Ela é um pouco exaltada. O melhor será esquecermos isto.
     - Tudo bem - Célia sorriu - Mas não foi por isso que cá viste, pois não?

     Maria baixou os olhos. Respirou fundo e suspirou calmamente.

     - Ficaste confusa com o que aconteceu com o meu filho, Mateus? Desculpa-me.
     - Sim - Maria elevou os olhos - Um pouco - e corou.
     - Eu poderia contar-te o que se passa com o meu filho, mas tornaria ainda tudo mais confuso para ti.

     Maria hesitou ao falar. Porém, Célia continuou.

     - O Mateus tem um problema de memória, apenas. Foi instinto meu levá-lo até ti para poder ajudá-lo. Não queria ter arranjado problemas para ti.
     - Nenhum. Mas o que eu tenho haver com isso? - perguntou gentilmente.
     - Não sabemos com toda a certeza. E eu sei que para ti é estranho isso. Para mim também era ao início.

     O telefone tocou.

     - Dás-me um minuto? - pediu Célia - Sim, Mateus? ... O quê? Isso porque ela está aqui comigo... Como?... Calma, filho, vem ter comigo e contas-me. Tem cuidado. Beijo.

     O telefone desligou. Célia reflectiu.

     - Era o meu filho. Ele esteve em tua casa, mas tu não estavas.

     Maria observou a forma como a doutora estava em pânico por dentro. Interrogou-se. "Porque iria ele procurar-me? O que se passa?"

     - Acho que devo ir embora - levantou-se Maria.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 7
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- Noite 10 de Janeiro -

     - Deixa-o aqui - pediu Raphael, enquanto Gonçalo abrandava o carro - Saltarei este muro e regressarei em dez minutos no máximo. Será esse o tempo total. Atentos, rapazes?
     - Sim.
     - Sim - respondeu Gonçalo ligeiramente atrasado.

     Raphael tocou em cada ombro dos rapazes com ambas as mãos e saiu do carro, pousou a mochila aos seus pés e inclinou-se sobre a janela aberta da porta. Calado, levantou o indicador e abanou o pulso.

     - Aprovo em como ele quererá trazer alguns itens pessoais, por isso estejam atentos ao meu assobio.
     - Como vai convencer um rapaz de quinze anos a fugir de um orfanato, consigo? - perguntou Gonçalo.
     - Sou assim tão feio e intimidante?
     - Quero dizer, o que lhe dirá que o fará vir? Ele nem o conhece.
     - Por não me conhecer, talvez eu acredite que ele fará o mais certo para si mesmo - respondeu Raphael levantando-se - A rua ficará escura, estejam atentos e quietos.

     Raphael agarrou a mochila e arremessou-a para lá do muro alto. Em dois passos correu em direcção da parede, saltou e agarrou-se com as mãos, flexionou os braços no topo e avançou para o outro lado num instante.

     - Fábio, o que sabes sobre isto? - perguntou Gonçalo depois de ter assistido à manobra.
     - Tanto como tu, meu.
     - Que terá este rapaz, "especial", tanto interesse para o Raphael?
     - Bastante - sublinhou em voz alta. Estava à vista.
     - O que sabes tu? Conta-me!
     - Não sei o suficiente. Apenas sei que ele é como tu,... - disse Fábio e citando a palavra de Gonçalo - ..."especial".
     - Ok. Mas porquê?
     - Porquê o quê?
     - Porquê aqui? Agora?
     - Não sei - respondeu, em tom de ofendido.

     Fábio encostou-se no banco e ligou o rádio num volume quase em silêncio. Ouviram o som dos grilos e da música durante dois minutos. Então, voltou a falar.

     - Não é a primeira vez que ele faz isto.
     - Como assim?

     A rua apagou-se por secções e por completo. Casas e edifícios em seu redor ficaram sem electricidade. A única e fraca claridade provinha do céu, da lua. Tudo o resto era escuridão.

     - Foi Raphael quem me sacou deste orfanato há uns meses atrás. Na noite anterior, antes de nos termos conhecido. - continuou Fábio.
     - Na noite anterior em que eu fugi do Hospital? Nunca me contaste...
     - Sim... Nem tinha razão para contar, não percebi isso na altura.

     Gonçalo pensou por alguns segundos.

     - Espera lá - reflectiu - O que fazias então na minha casa, ou no que restava dela, o que fazias lá? Foi ele?
     - Não. Não - respondeu Fábio - Não teria feito isso.
     - Mas o que te dá tanta certeza que não o fez por minha causa?
     - Porque ele não te conhecia. Fui eu quem te apresentei a ele, lembras?
     - Sim... Ok - Gonçalo recordou - Lembro da cara de espanto dele, foi arrepiante ao início.
     - Pois. Mas ele já tinha conhecido algumas pessoas com "dons" antes.
     - Ah?
     - É o que ouviste, meu. Ele já tinha conhecido algumas antes, contou-me hoje.
     - Algo não bate certo aqui.
     - Porque dizes isso? - questionou Fábio com um ar surpreso.

     Os dois olharam para o relógio. Acenaram com a cabeça apontando para fora e saíram do carro. Encostaram-se, sempre atentos e cuidadosos, ao muro e esperaram um pouco mais.

     Fábio tremeu.

     - Acho que me arrepiei na espinha...
     - Ele nunca nos contou nada sobre isto - afirmou Gonçalo.
     - Nós nunca perguntamos.
     - Ok, mas não sabíamos. tudo. E agora este rapaz? Como irá este rapaz ajudar-me a entender o que aconteceu no dia do incêndio da minha casa? - perguntou.
     - Que outro tipo de dom terá ele? Aliás? Que outro "dom" conhecemos?
     - Além do meu, mais nenhum - disse Gonçalo, encostando-se ao muro.

     Um assobio quebrou a conversa. Era o sinal de Raphael.

     - Se o Rapahel me tirou deste orfanato e agora...
     - ...está a tirar este rapaz "especial"? - concluiu Gonçalo ao agarrar uma mochila vinda do outro lado do muro.

     Os dois olharam-se interrogados. O rosto de Fábio petrificou. Agarrou também outra mochila.

     - Não nos vamos precipitar. Falaremos com o Raphael depois - terminou Gonçalo.

     Do topo do muro surgiu o jovem rapaz. De seguida, Raphael, que o agarrou e desceu com ele ao colo num salto olímpico. Não tinham tempo para apresentações. Entraram no carro e Gonçalo arrancou na noite.

     - Gonçalo, leva-nos para o Porto - ordenou-lhe Raphael.
     - Para o Porto? - perguntou surpreso o rapaz.

     Gonçalo não questionou. Acelerou a fundo, conduzindo como um maluco. Fábio levantou apenas uma sobrancelha.

     - Para o Porto, de novo, acabei de chegar!
     - Lá se foram as tuas "férias" - sorriu Gonçalo.
     - Não vejo nada de diferente no rapaz - murmurou Fábio, que seguia do seu lado.
     - Porquê? Em mim vês?

     Fábio revirou os olhos. Estupidez de suposição. Continuou a ouvir a conversa entre Raphael e o rapaz que seguiam nos bancos traseiros.

     - Raphael? É o seu nome? - perguntou o rapaz.
     - Sim.
     - O senhor também vê espíritos como eu?

     Gonçalo e Fábio olharam-se pasmados, "Espíritos?", pensaram em sintonia. A conversa desenrolava-se cada vez mais. Gonçalo abrandou a condução para a ouvir com melhor atenção.

     - Não pode ser - negou, descrente.

Vai pela sombra, que nem a noite mereces...

Só me pergunto porquê?

O efeito do defeito - Gaspar

Parte 7
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- Noite 10 de Janeiro -

     Todo o Orfanato estava envolto de escuridão. Todos pareciam dormir descansados, ninguém havia dado um alarme. Gaspar e Samuel permaneciam no quarto. Samuel dormia encostado na cama. Gaspar entrou em pânico. Aproximou-se num salto para junto da janela, dali olhou até onde os seus olhos lhe permitiam ver. Não era apenas a rua que havia ficado sem electricidade, mas sim dezenas de quarteirões no centro. No entanto, o seu quarto ainda estava iluminado por uma luz natural. Era a mesma nuvem branca, agora iluminada, que ainda pairava sobre Sam.

     - Que raio! - praguejou Gaspar, "Que será isto?"

     Outros pensamentos habitavam e manifestaram-se na mente de Gaspar. "Será ele?", "Será que aquele homem estava a falar tão a sério?", Gaspar matutou numa hipótese. Uma antiga ideia, a de fugir do Orfanato e ter uma vida mais livre, acompanhou-o por muitos meses, mas sem nunca ter tido uma oportunidade real. Gaspar interrogou-se, "Fugirei com ele? Será de confiança? Que me acontecerá depois?"

     Ao fundo da rua ouviam-se cães ladrarem e uivarem. Carros buzinando. E o tempo não parava. Gaspar nem se havia apercebido que a luz que Samuel emitia desfalecera lentamente, desaparecendo na escuridão. A escolha estava nas suas mãos. "Vou ou fico?"

     - "Gaspar?" - falou uma voz trémula e aguda.

     Gaspar reconheceu-a perfeitamente, o que não fazia sentido nenhum. Era a mesma voz que ouvira de manhã, da rapariga desconhecida que havia morrido na cantina. Olhou para a janela e ali estava, em pé, com a mesma roupa queimada e o corpo desfigurado: uma pequena menina translúcida. Gaspar engoliu em seco e tentou relaxar, controlando a respiração.

     - "Gaspar..." - disse a pequena movendo o braço gentilmente, chamando-o.
     - Quem és tu? E... como vieste aqui ter se morreste na cantina?

     Gaspar tremia. O aquecimento estava desligado por alguns minutos mas o frio depressa se fez sentir. Esperava nervoso pela resposta da menina. Reflectiu.

     - Como sabes o meu nome? - perguntou numa voz pacífica.
     - "Não importa quem eu sou, agora." - respondeu, sorrindo - "Foi o Raphael que me pediu para te chamar, agora percebo."

     Gaspar sentiu confusão das palavras da menina. Contudo, a dúvida fora esclarecida, Raphael estava por perto para o buscar. A primeira impressão que Gaspar entendera fora que aquele homem também deveria conseguir falar com os espíritos. Isso bastou para convencê-lo.

     A janela do quarto de Gaspar e de Samuel situava-se no primeiro andar. "Por onde irei fugir?", perguntou-se.

     - Gaspar! - sussurrou uma voz vinda do exterior.

     Gaspar aproximou-se cautelosamente até perto da janela, onde a menina se mantia curiosa e não tirava a vista de cima dele. Num gesto automático, Gaspar tentou tocar na menina, algo parecido, que havia feito há algum tempo atrás com um outro espírito, mas sem êxito qualquer. Espreitou para baixo. Encostada à parede das traseiras, uma escada de madeira, propriedade do Orfanato, elevava-se até à janela.

     - Gaspar! A decisão é tua. Agora sabes do que sou capaz, também.

     Gaspar hesitou por breves segundos. Repensou em tudo, tentou repensar em tudo. Nada mais fazia mais sentido, senão fugir com aquele desconhecido. Olhou de canto para a menina, mais uma vez, ela sorriu-lhe. Virou-se para o interior e agarrou duas mochilas. Com cuidado e sem fazer muitos ruídos, pegou em algumas roupas e fechou a mala. Pegou no seu computador portátil e na bateria e colocou-o na segunda mochila. Junto à janela, elevou as mochilas. No terreno, Raphael acenou em afirmação. Atirou as mochilas, uma de cada vez. Gaspar olhou pela última vez para o interior do seu quarto. Samuel dormia sem preocupações. Queria despedir-se do amigo como deveria de ser, mas teria que ficar para mais tarde.

     Respirou fundo e voltou-se para a janela. A menina, que num segundo estava no interior do quarto, estava no seguinte lá em baixo, ao lado de Raphael. Gaspar equilibrou-se no peitoral da janela e agarrou-se às escadas de madeira. Em segundos desceu.

     - E agora? - perguntou Gaspar.

     A menina desaparecera. Raphael agarrou as escadas e atirou-as para o outro lado do jardim sem qualquer esforço. Os dois correram até ao muro, junto de uma grande torre de distribuição de electricidade. Pegaram numa mochila pousada e guardaram uma tesoura e uma lanterna ainda ligada. Raphael colocou-a ao ombro junto da outra mochila de Gaspar e fechou a caixa de distribuição.

     Raphael emitiu um assobio breve, atirando de seguida uma mochila e depois outra. Esticou a mão para Gaspar em busca da última mochila.

     - Esta contem o meu portátil, eu levo-a comigo - disse Gaspar, agarrado à mochila.
     - Tudo bem - sorriu Raphael.

     O muro elevava-se cerca de dois metros e meio. Raphael fez sinal com as mãos e uniu-as ao nível dos joelhos de Gaspar, que encaixou o seupé esquerdo e trepou até ao cimo da parede. Sem entender como, Raphael velozmente subiu o muro e agarrou-o, saltando para o outro lado do muro com ele ao colo. Gaspar abriu os olhos e ao seu lado haviam mais dois rapazes que seguravam as mochilas.

     Todos entraram no carro preto. A noite continuava calma, ao contrário da pulsação de Gaspar que se assemelhava a um sismógrafo durante um terramoto na escala máxima. O rapaz mais velho conduzia, enquanto que o mais novo, um tanto familiar para Gaspar, seguia no lugar do passageiro. Raphael seguia atrás com ele.

     - Gonçalo, leva-nos para o Porto - ordenou o homem.
     - Para o Porto? - abismou-se Gaspar.

     Dentro do carro, ouviam-se murmúrios entre os rapazes.

     - Passaremos lá esta noite, em minha casa. É mais seguro. Não te preocupes - apaziguou Raphael, olhando-o nos olhos com um sorriso maduro.

     Gaspar não sabia o que estava a sentir no momento, um misto de nervosismo e desconforto com a situação, preocupação para com o amigos que deixara para trás, algo que o poderia facilmente leva-lo a arrepender-se. Não queria pensar nisso. Haviam questões a serem colocadas. Colocou o cinto, devido à condução agressiva, e reencostou-se com segurança no banco.

     - Raphael? É o seu nome? - perguntou, não envergonhado, receoso.
     - Sim.
     - O senhor também vê espíritos como eu?

     Os rapazes tornaram-se automaticamente mudos. Um deles ainda olhou para trás. Raphael sorriu com os lábios e acenou em negação.

     - Mas consegue falar com eles - afirmou Gaspar - Aquela menina falou-me sobre si.
     - É verdade. A tua capacidade é deveras mais desenvolvida que a minha. Eu apenas consigo comunicar-me com ele, mas tu, tu consegues mais que isso.
     - Consigo vê-los, sim - concluiu Gaspar.
     - Conheces a menina?
     - Não. Mas já havia visto antes, esta manhã na minha escola, depois do incêndio.

     Raphael posicionou-se no banco para conversar abertamente com Gaspar.

     - Diz-me, o que não te fez sentido?
     - Sobre a menina? O facto de ela não se agarrar apenas ao local onde morreu, mas conseguir mover-se para outro lugar, como no Orfanato, há minutos.
     - Como sabes isso?
     - Porque foi assim que eu percebi com os meus pais...

     Gaspar desviou o olhar por momentos. O interior do carro permanecia em silêncio, apenas se ouvia a conversa dos dois. Raphael levantou uma questão.

     - E se alguém morrer e não se agarrar apenas ao lugar?
     - Agarrar-se a uma pessoa viva? A si? - Gaspar ponderou - É a primeira vez que vejo acontecer.
     - Claramente és um rapaz brilhante. Teremos muito para falar.

     Gaspar sentiu uma curiosidade imensa a desvendar-se. Nada mais parecia importar senão aquela conversa.

O efeito do defeito - Maria

Parte 7
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- Noite 10 de Janeiro -

     Ambas regressaram a casa depois do passeio de tarde pelo parque. Maria deitou Carolina na cama, que adormecera com o cansaço. Certificou-se que a irmã estava confortável e agasalhada. Trocou de roupa, vestindo o pijama de noite e levou a roupa usada para a cozinha. Lá, a mãe preparava o pequeno-almoço para o dia seguinte.

     - Ainda estás acordada, filha - afirmou a mãe.
     - Sim. Não tenho sono, ainda.
     - Queres uma chávena de chá que estou a preparar para mim?
     - Sim - respondeu Maria, sentando-se ao balcão da cozinha.

     A água fervia e a mãe colocou a saqueta das ervas aromáticas. De seguida, serviu.

     - Cuidado, está quente. A Carolina adormeceu?
     - Sim, mãe.

     As duas tomaram um gole do chá. Maria agarrou a chávena, concentrando-se no que iria perguntar.

     - Onde está o Bernardo? - perguntou, desviada do assunto ainda.
     - Ele saiu, querida. Teve uns assuntos dele para tratar.

     Maria questionou-se. Mal sabia que tipo de emprego ele teria ao certo.

     - A estas horas? – perguntou, Maria.
     - Sim, ligaram-lhe. Ele disse que era urgente...

     Maria não se quis importar mais. Havia uma outra questão, mais importante.

     - Mãe, porque o pai veio cá a casa, ontem?

     A mãe desviou o olhar da filha, levantou-se do banco e arrumou a sua chávena vazia na banca. Maria bebeu um pouco mais e levantou-se também.

     - Ele queria saber como eu estava e como vocês estavam também.
     - Ele tinha bebido... - afirmou Maria.
     - Sim, eu sei - disse a mãe. Abriu a torneira e começou a lavar as chávenas.

     Maria aproximou-se e agarrou um pano seco.

     - Ele tinha estado antes no Hospital para ver a Carolina mas expulsaram-no naquelas condições. Mais tarde passou cá para entregar a chave dele da casa. - concluiu a mãe.
     - O que terá acontecido para ele mudar tanto? - perguntou Maria.
     - Principalmente o vício...
     - Ele... - suspirou Maria - Ele ficou assim desde que a Carolina teve o acidente...
     - Não havia razão nenhuma que desculpasse o comportamento dele agora. Todos nós passamos pelo mesmo...

     Maria assentiu a desilusão nas palavras da mãe. Terminou de secar a sua chávena e arrumou-a no seu lugar. Continuou a olhar para a sua mãe.

     - Alguma coisa mais teve que acontecer... - continuou a mãe.
     - Vocês discutiam sobre isso o tempo todo - afirmou.
     - Acho que já não havia outra forma para resolver os nossos problemas. Foi ele quem decidiu que deveria ir embora. Por um lado, foi o melhor...

     Maria percebia o quão falta ele ainda fazia em casa, depois de tantos anos juntos. Mas pensava na mesma hipótese que a mãe. A separação foi dura mas trouxe equilíbrio até os dias de hoje.

     - A Carolina sente a falta dele, mãe.
     - Eu sei. Ela não passou por nada disto enquanto teve no Hospital. Será justo dizer que é mais fácil para ela?

     Maria encolheu os ombros sem pensar.

     - Acho que não. É ela quem vai sentir mais falta dele agora. O Bernardo ainda é um estranho para ela. E ela só viu o pai duas vezes, no Hospital, nem teve tempo para entender o que se passava.
     - Mas ela é muito forte e nós estaremos aqui para ajuda-la em tudo - disse a mãe.

     Maria sorriu e acenou com a cabeça em afirmação. A mãe consentiu. Olhou em sua volta, a cozinha estava impecável e pronta para o dia seguinte. Depois perguntou.

     - Quem era a senhora que te levou ao Hospital?

     Maria pensou nas possibilidades em a mãe saber. Talvez a Carolina lhe havia dito.

     - O teu pai disse-me que alguém bateu à porta enquanto ele esteve cá. Uma senhora, médica, acho eu, que queria falar convosco. Que depois te levou. Quem era?

     Maria relembrou a conversa com o rapaz, chamado Mateus, e a sua mãe. Não fora uma conversa vulgar, quase nada fazia sentido e ele era tão estranho e misterioso. Eles apenas tinham vindo ao seu encontro em ajuda para ele mesmo. Ajuda que Maria não entendera como lhe oferecera.

     - Uma senhora que vinha pedir ajuda para o seu filho.
     - Ajuda?
     - Sim - Maria encolheu os ombros em insignificância - Acho que o filho tinha problemas de memória e que ele se lembrava de mim.
     - Como assim, lembrava de ti? - a mãe elevou a voz de preocupação e desconforto simultâneo.
     - Não sei, mãe.
     - E como te encontraram aqui? Como sabiam? - a mãe continuou, questionada.
     - Não sei.
     - E mesmo assim foste com eles?

     Maria estava a perceber o ponto em que a mãe queria chegar.

     - Calma, mãe. Eles foram simpáticos comigo, nada mais.
     - Nada mais? Vieram assim, do nada, à nossa casa? Não faz sentido, porque haveriam de vir ter contigo assim?

     Maria entendia a preocupação da mãe. Mas explicar para a mãe os detalhes todos que nem ela própria conseguia entender, mas que lhe faziam um pouco de sentido, ainda iriam prolongar mais as preocupações. "Talvez devesse ter mentido.", pensou para si.

     - Se houver uma próxima vez que eles venham cá novamente, eu mesma falarei com eles. De acordo?
     - Sim, mãe - respondeu Maria, obediente à situação.
     - Tenho que me deitar. Está a ficar tarde.

     Desejando boa noite, a mãe subiu para o quarto. Maria ainda ficou na cozinha.

     Reflectindo sobre o assunto, questionou-se com as mesmas perguntas da mãe. "Como souberam eles chegar até aqui? Como sabiam a minha morada?", pensou. Verdade seria, "Vieram até aqui à minha procura apenas porque precisavam da minha ajuda? Só prova que seria mesmo importante, a intenção." Maria continuou a pensar sobre o assunto. "Porque não me perguntei sobre isto antes? Porque não lhes perguntei? Que importância terei eu para eles?"

     Toda a casa permanecia em silêncio. Num segundo, toda a electricidade falhou, ficando tudo às escuras também.
 

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