Parte 4_____________________________________________________________________________________
- Mateus? - tentou Célia chamar a atenção dele.
- Que se passa com ele? - perguntou Maria.
Célia segurou os braços de Mateus e agitou-os com delicadeza.
- Mateus!
- Sim - respondeu ele, de volta à realidade.
- O que lembraste?
- Mãe, não foi esta rapariga em si que me fez delirar. Foi o pai! As lembranças do pai.
Célia baixou os olhos e ergueu-os novamente para Mateus.
- Falaremos disto mais tarde. Em casa, sim? - prometeu ela.
Maria não entendia o que se passava. Entretanto, recebeu uma chamada.
- Preciso de ir para o Hospital. A minha irmã recebeu hoje alta médica. Desculpem-me.
- Maravilhoso - disse Célia com um sorriso - Vem connosco.
- É muito gentil da vossa parte - Maria não tinha outra escolha senão em aceitar. Levaria muito tempo a chegar ao Hospital a pé e estava a entardecer.
- Vem, queremos conhecer a tua irmã - disse Célia.
- Muito obrigado - agradeceu.
Entraram todos no carro. Durante a viagem, Mateus continuava a matotar nas lembranças do pai.
Certo dia, em casa, Mateus está no seu quarto, isolado de todos. A sua cabeça fervilha de dores e emoções, memórias que prefere esquecer e que não o consegue fazer. Nesse momento, o seu pai entra.
- "Filho? Posso?"
- "Sim."
- "O pai pode não ser médico como a mãe, nem ter uma profissão de respeito... Mas sabes que sempre te adorei. E adoro."
Mateus nem olha.
- "A mãe contou-me o que se passa contigo." - diz, ao sentar-se perto de Mateus.
- "Mas não entendes o que se passa comigo, pois não?"
- "Entendo sim, agora."
Os dois permanecem em silêncio alguns minutos.
- "Estarmos todos zangados não vai resolver nada..."
Mateus olha cuidadosamente para o seu pai. O rosto dele é triste e sereno.
- "Tenho um segredo para te contar." - a voz do seu pai é calma e verdadeira - "Quando era mais novo, os meus pais discutiam a toda a hora. Numa noite, o teu avô descarregou a ira sobre mim. Bateu-me como nunca o havia feito. Então, fugi de casa. Eu tinha um dom. Sonhava quando escrevia. Sonhava exactamente com o que escrevia antes de adormecer. Ao início era bom. Mas entusiasmava-me tanto que às vezes não tinha cuidado com o que escrevia..."
- "Porque nunca me contaste isto antes?" - pergunta Mateus atento.
- "Ouve. Entrei em paranóia com maior parte dos sonhos. Nenhum deles se realizava. Não passava tudo de mentiras e imaginação. Comecei a beber antes de adormecer. Nessas noites nunca sonhava. Infelizmente, não me controlei o suficiente... e entrei num ciclo de vício."
- "Oh pai..."
- "Nunca contei isto a ninguém, nem mesmo à mãe."
Mateus sente empatia entre a pena. Finalmente encontrou algo em comum com o seu pai.
- "Quando ela me contou o que se está a passar contigo, vi em ti o que via em mim. E agora entendo-te, filho. Existem coisas inexplicáveis. Mas existem. Um dia encontrarás uma forma de privar esse teu dom, se precisares, mas nunca abuses de ti próprio. Não corras o mesmo risco que eu."
- "Agora percebo, pai. Mas isto não pode ser considerado um dom..."
- "Um dia descobrirás que pode."
O carro parou. Mateus voltou à realidade e apercebeu-se que se encontravam no parque do Hospital e era praticamente noite. Maria apressou-se a sair do carro. Célia olhou para Mateus.
- Conta-me Mateus - pediu a mãe.
Mateus tirou o cinto e colocou a mão no puxador da porta. Hesitou.
- O pai tinha o mesmo problema que eu... - soltou, desabafando - Ou parecido. Foi dele de quem tirei a ideia de consumir alcóol para me livrar dos problemas... Não quero falar disso agora... - Puxou o puxador da porta e saiu do carro.
Célia respirou fundo. Inconformada.
Ao balcão da recepção, Maria deu os seus dados pessoais em troca de um cartão visitante.
- Boa noite, Dr. Célia - cumprimentou a recepcionista.
Todos subiram para o terceiro andar. Maria à frente. Ao fundo do corredor estava um médico.
- Boa noite, Dr. Célia.
- Boa noite, Dr, Jorge.
Os dois médicos olharam-se no corredor, afastados, com uma leve desconfiança no rosto de cada um.
- Como está a minha irmã? - perguntou Maria, impaciente.
- Podem entrar. Ela é uma menina muito forte, superou as espectativas de todos - disse o médico.
Uma enfermeira acabava de vestir a menina com um casaco branco. Maria entrou e abraçou a sua irmã. Mateus ficou à porta, encostado.
- Manaa! - gritou a pequena.
- Olá Carolina, sentes-te melhor?
Mateus ouviu o nome da menina. "Carolina". Pareceu-lhe famíliar. Mas ver o rosto da menina foi como uma faísca que desencadeou uma outra lembrança.
Apenas amigos de família do seu amigo Gonçalo está presente no funeral. Mateus e Célia assistem um pouco mais afastados. Todos fazem um momento de silêncio em memória de António Fernandes, - o pai - Augusta Fernandes, - a mãe - e de Adriana Fernandes - a irmã. Durante o final da cerimónia, enquanto todos sussurram sobre as mortes e o incidente, uma menina triste aproxima-se do lugar que simboliza a pequena Adriana. Mateus memoriza-a sentimentalmente. A pequena, ajoelhada, coloca uma flôr branca no relvado, junto à pedra.
- "Vamos, Carolina" - chama uma rapariga mais velha.
Mateus sobressaltou ao pé da porta. "Fora Maria quem havia chamado pela menina da flôr..." - pensou. "Ambos estivemos no funeral dos pais do Gonçalo." Ao pensar no nome do amigo, entristeceu.
Relembrou, também, tê-lo visto fugir há algumas horas atrás, se não fosse imaginação sua.
- Esta é a minha irmã, Carolina - disse Maria.
- Olá - cumprimentou a pequena de sorriso no rosto.
- Prazer em conhecer-te. O meu nome é Célia - apresentou-se a mãe de Mateus.
Mateus olhou para o resto do quarto. Numa mesa pequena junto à cama havia uma jarra. Dentro, em água, estava uma flôr branca.
- Olá - dirigiu-se Carolina para Mateus.
Mateus voltou o olhar distraído e deu atenção à pequena.
- Olá, como estás? - perguntou.
- O médico disse que estou melhor e que posso voltar para casa - disse Carolina, terminando a frase com receio - Não és o menino que estavas no funeral da minha amiga Adriana? - perguntou inocentemente, com uma voz doce.
Mateus sorriu. Parecia coincidência a troca de memórias.
- Conhecias a Adriana? O irmão dela era meu amigo também.
- Sim... - respondeu entristecendo. O seu rosto parecia transmitir lembranças. Uma mais aterrorizante em concreto.
- Vamos para casa? - propôs Maria.
Todos se despediram. Maria e Carolina permaneceram no Hospital por mais algum tempo.
Mateus dirigiu-se para o carro. Célia seguia-o. Ao desviar o olhar, Mateus pressentiu alguém perto no parque. Seguiu o olhar nas sombras criadas pelas luzes dos candeeiros entre o muro e os automóveis. Das sombras saiu uma pessoa. Mateus tentou identificar.
- Gonçalo! - gritou Mateus.
A pessoa parou e olhou na sua direcção e, num segundo, desapareceu nas sombras. Mateus correu na direcção mas não havia mais ninguém. "Será mesmo verdade!", pensou ele, irritando-se consigo próprio. "Porque haveria ele de fazer isto?!".
- Mateus? - chamou a mãe.
- Eu tenho a certeza que era ele...
- Foi a mesma pessoa que viste hoje? - perguntou convicta da situação.
Mateus não sabia o que fazer. Não sabia o que falar. Havia tanto na sua cabeça para descarregar.
- Talvez estejas a delirar por ele, filho. É muito improvável que ele tenha fugido do Hospital. Tu mesmo viste a ficha médica. Tu mesmo viste o estado dele...
- Não sei, não sei... - Mateus sentia-se cansado e infeliz.
Célia colocou a sua mão no ombro de Mateus.
- Vamos para casa. É tarde...