Rafael Braga

Conforto

Lembro-me vagamente, da sensação e do vazio de perda que me engasgou em ar seco há alguns anos atrás.
Imagino que todos o sentimos em variados momentos.
Lamentei hoje; repensei no valor que atribuo a certas coisas do meu dia-a-dia e sinto-me certo, que devo continuar a mostrar o que prefiro esconder daqueles que adoro.
Independentemente da direcção da dor, o facto da mesma estar presente, mexeu comigo hoje, a dor que senti não me era directa, da mesma forma não me dizia respeito, no entanto, percebi que me ultrapassava.
Assistir ao choro de alguém não me comove apenas, revolta-me!
Neste dia vi alguém chorar, entre outras tristezas, alguém que me tocou antes com um sorriso, hoje tocou-me com uma lágrima..
A dor passou mas ficou a impressão.

Um beijo.

Acordado

Um "Olá" desperta a curiosidade. Uma conversa o interesse; uma brincadeira a cumplicidade; um olhar desperta a apreciação; um pormenor desperta a atenção. Um abraço desperta carinho e um reencontro o mesmo caminho. Um sorriso desperta o coração, um pensamento sem reflexão. Ainda não desperta preocupação. Ainda não desperta a reflexão. Ainda não desperta a evidência da minha previsível dependência. Fui desperto; não quero adormecer mas... sinto que o sono se faz envolver.

O efeito do defeito - Gabriela

Parte 5
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- Manhã 10 de Janeiro -

     O autocarro estava empilhado de gente. Por fim, parou na última paragem. Todos desceram. Na rua, as pessoas deslocavam-se para os seus empregos. Crianças para as suas escolas. A caminho do seu emprego, Gabriela parou num café com esplanada.

     - Bom dia!

     Todos os dias tomava o seu pequeno-almoço naquele café, a caminho da livraria, ambas situadas no centro da cidade. Cumprimentou o seu recém amigo e funcionário de mesa, ao sentar-se na sua preferida, que lhe respondeu com um gesto de bom dia.

     - (Como estás?) - perguntou o seu amigo servindo-o à mesa.
     - Vejo que andas a praticar - sorriu Gabriela - Bem. Estou apressada hoje. Atrasei-me em casa.
     - Sempre, a, mesma, tu. Sim, ando, a, praticar.
     - Fico contente por saber - disse Gabriela, sorrindo mais uma vez.
     - Logo, queres, sair? Tenho, o, resto, do, dia, livre.
     - Sim, claro. Hoje também saiu da livraria mais cedo. Depois falamos.

     Tomou o seu café e o seu bolo preferido. Despediu-se do seu amigo e saiu contente pela rua.

     Gabriela adorava o seu trabalho. Há dois meses que trabalhavacomo fúncionária na livraria. Era um lugar calmo e pacífico, visitado por jovens estudantes e também idosos à procura de um passa-tempo. O seu trabalho era simples. Apenas preencher requisitos e arrumar livros nas prateleiras indicadas. E pagavam bem. Com tudo, ainda podia ler e aproveitar um livro ou outro para si própria nos tempos livres e na sua pausa para o almoço. Dispunha também de uma secretária, decorada com os seus objectos e pertences. Era um trabalho mesmo bom para part-time.

     Por vezes, aconteciam um mal entendido ou outro. Alguns embaraços também. Mas todos os dias, Gabriela habituava-se. Durantes dois anos o fizera na sua vida. Habituar-se.

     - Olá. Quero levar este livro - falou um rapaz aproximando-se do balcão.

     Distraída com a catalogação de alguns livros apercebeu-se do rapaz. Era alto, bem vestido e giro. O mesmo rapaz que se tornava habitual há alguns dias.

     - Desculpe?
     - Quero requisitar este livro - repetiu, escapando-lhe um riso matreiro do canto da boca.
     - Requisitar? - perguntou, parecendo-lhe ter percebido.
     - Sim.

     Levantou a mão e ele entregou-lhe o livro e o cartão de identidade. Enquanto ela preparava a folha para preencher o rapaz debruçou-se sobre o balcão.

     - Gostavas de ir tomar um café, comigo?

     Mais uma vez, Gabriela não acompanhou o que o rapaz lhe falou.

     - Desculpe... - nesse momento sentiu embaraço. Olhou os lábios do rapaz esperando que ele repetisse.
     - Perguntei se querias sair para tomar um café comigo - repetiu, delicadamente.
     - Não posso, tenho planos hoje - respondeu, tendo percebido e sentindo-se mais embaraçada.

     O rapaz levantou-se do balcão. Gabriela entregou-lhe uma cópia da folha e o livro com o B.I. O rapaz ainda hesitado voltou-se para o balcão. Sobre um dos lados havia uma informação.

     "Funcionário com deficiência auditiva"

     Gabriela reparou.

     - "Onde eu me ia meter... Surda... Volto amanhã... para devolver o livro..."

     Gabriela "escutou", entre intervalos e outros pensamentos.

     O rapaz saiu sem olhar para trás. Sozinha entre as pessoas na livraria, Gabriela sentiu-se enclausurada com o silêncio e a tristeza. Não era mais frustração. Levantou-se, correndo para a casa de banho.

     Chorou de vergonha e dor...

     A hora de almoço divagarou sobre os minutos contados. No telemóvel havia uma mensagem.

     "Afinal vão precisar de mim aqui no café. Como já não tenho a tarde livre não vamos poder estar juntos. Desculpa. Talvez amanhã. Beijo."

     Gabriela guardou o telemóvel sem responder. O seu dia de trabalho terminava numa hora. Só lhe restava ir para casa.

     Ao terminar as arrumações finais na livraria, trancou a porta de entrada e seguiu para a paragem de autocarros.

     - "Atrasado... o autocarro... Estou farto de esperar... Oh, é tão bonita... porque será que olha para mim?..."

     Gabriela desviou o olhar. Fechou os olhos para se concentrar. Cada vez mais se tornava difícil de controlar. Por vezes "escutava" outras pessoas sem se aperceber. Fazia-lhe doer a cabeça. Por fim o autocarro chegou. Entrou e sentou-se ao fundo nos últimos lugares vagos. Não podia continuar naquele estado. Pensou. Estar triste e envergonhada desconcentrava-a mais.

     - Soraia? Estás cá? - chamou, ao chegar a casa. Partilhavam a casa por conveniência. Mas partilhavam segredos por amizade. Alguns segundos de silêncio exaltaram Gabriela.
     - "Estou no meu quarto... Vem, eu... ver televisão..."

     Dirigiu-se e entrou no quarto.

     - "Que se passa...? Gabi... Conta-me... Estás triste..." - pensou a amiga.

     Gabriela apenas se deitou sobre a cama. Soraia levantou-se para se chegar perto e acariciar-lhe com mimos. Sabia que o seu dia não lhe tinha corrido bem.

     - "Vamos sair... tomar qualquer coisa... café... não chores..."

     Passando a sua mão na cara, limpou as lágrimas.

     - Porque é que as pessoas me tratam indiferente por eu ser surda? E no entanto, sei às vezes o que elas não me dizem... Sinto-me uma porcaria! Que raiva! - Gabriela abafou o seu choro na almofada...

     Soraia pousou-lhe a mão no seu cabelo escuro.

     - "Não percebo... o que passou... não queria que chorasses mais..."

     Gabriela baixou-se novamente sobre a almofada. O eco de voz fazia-lhe doer dentro da cabeça.

     - Preciso de dormir...
     - "Dormir já?... Ainda é cedo... Quatro da trade... e esta cama é minha... quer dizer... desculpa... oh, não me "escutes" por favor..."

     Gabriela levantou-se da cama. Esfregou a cara e o cabelo para trás.

     - Não te preocupes - disse - Amanhã estarei melhor - e sorriu em silêncio.

     No seu quarto, Gabriela deitou-se sobre a sua cama. Pegou no livro sobre a mesinha do lado direito e começou a ler para si. Ao mesmo tempo que lia pensava no que lhe tinha aocontecido. Parou de ler.

     - Soraia, vou sair! - gritou ao passar pela porta da rua.
     - "Alegra-te" - "ouviu".

     Atravessou a rua até ao parque. Sentou-se num dos bancos de jardim e fechou os olhos. O ar no seu rosto era agradável. O dia era bonito. Ao abrir-los, observou cada uma das pessoas que passavam por si.

     - "Ainda tenho... pagar mais umas contas..."
     - "Não me lembro... Carro... casa... trabalho..."
     - "Estou tão... atrasado... Porra..."
     - "Esquerda... direira... esquerda... direita..."

     Num banco à sua frente, do outro lado da passagem, sentou-se uma rapariga, vestida de branco e azul. O seu rosto era triste e fatigado.

     - "Cansada... Sentida... Não aguento... Não consigo controlar isto..."

     Gabriela continuou a olhar, com mais atenção.

     - "Não consigo... arranjar uma maneira... não sei como fiz... atrás no tempo..."

     Gabriela não entendeu. Os pensamentos não eram algo que se podesse ouvir com clareza. Eram demasiados rápidos para serem acompanhados. E por vezes nem faziam sentido.

     Pensou para si própria que não era a única com um problema. Toda a gente tinha o seu. Contar a alguém o problema poderia piorar, pois nem toda a gente possuia os mesmo pensamentos, nem os mesmos problemas. Seria algo com que teria que viver sozinha. Pensando melhor, lembrou Soraia, a sua melhor amiga. E como Soraia a conhecia e a tratava como uma verdadeira amiga.

     - "Tentarei... Descobrirei... mais uma vez!... Não vou... desistir dele..." - continuou Gabriela a "escutar" a rapariga do outro lado.

O efeito do defeito - Maria

Parte 4
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     - Para Lamaçães, por favor - disse Maria para o taxista.

     O carro, parado à frente do Hospital, arrancou. Para trás, ficavam apenas meses de tristeza.

     - Vamos para casa - disse em tom carinhoso para a sua irmã, Carolina.
     - Sim - respondeu. O seu olhar era vazio.

     Ao chegarem a casa, Carolina dirigiu-se directamente para o seu quarto. Maria fez uma paragem na cozinha e foi logo ter com ela.

     - Posso entrar?
     - Entra , mana.
     - Deves ter fome. Trouxe o teu chocolate preferido - Maria mostrou a embalhagem e colocou-a sobre a cama.
     - Não tenho fome - Carolina deitou-se sobre a cama e afastou o chocolate.

     Maria não insistiu. Pegou no chocolate e colocou na mesinha ao lado da cama. De seguida deitou-se paralela a sua irmã. As duas permaneceram caladas por breves instantes.

     - É giro, ele - sorriu Carolina.
     - Quem? - perguntou Maria, disfarçando a picada de embaraço.
     - Aquele rapaz com quem estavas no Hospital. Mateus.
     - Acho que sim - disse, entrelaçando os dedos - Mas é um pouco estranho, não sei. É tão misterioso que me fez recear...

     Carolina remexeu-se na cama. Maria aconchegou-a, subindo o cobertor sobre a irmã e ela própria. O cansaço pesava-lhe nas pálpebras. Ambas adormeceram...

     Maria sonhou.

     O céu cinzento ilustrava perfeitamente o ambiente da cerimónia. Todos usavam as suas roupas pretas. Maria sentia-se desconfortável. Ouviam-se pequenos soluços e choros. As vozes das conversas particulares dos amigos da família pairavam com aspecto de serem assombrosas. O verdadeiro espírito de um funeral. Destestava.
     Maria e Carolina foram mais cedo para casa, reencontrando-se ao fim da noite com os pais.
     A chegada deles desenvolveu-se em críticas e desordem. A mãe tentava gritar ainda mais alto. O pai ficava cada vez mais furioso. Discutiam sem saberem mais a razão.

     - "Parem!" - gritou Carolina segurando o braço de cada um.

     Descontrolado e cego pela discussão, o pai bufeteou a menina, atirando-a para o chão. A mãe depressa a afastou em sua protecção, Mas os dois encontraram um motivo maior para continuarem a brigar.

     Carolina saiu de casa a chorar. Ao ouvir toda aquela gritaria, Maria desceu do seu quarto. Não encontrava a sua irmã. Num momento, todos pararam na realidade. Inquietos, sairam em busca da menina.

     Maria correra pela estrada fora, gritando o nome da irmã.

     Passou uma hora, sem haver um sinal.

     Ao fundo de uma rua, desesperada avistou um rapaz.

     - "Desculpa..." - disse, ganhando folgo - "Não viste uma menina de 6 anos? Loira e com um casaco branco..."
     - "Quê?"
     - "Uma rapariga... desta altura, loira... É a minha irmã..."
     - "Calma, respira fundo. Como te chamas?"
     - "Maria... Por favor, ajuda-me a procurar a minha maninha!"
     - "Maria, sou o Mateus. Que se passa?"
     - "A minha irmã fugiu de casa... Porque... os meus pais discutiram... e ele bateu-lhe..."
     - "Meu Deus..., onde achas que ela pode ter ido?"

     Maria tinha procurado em todos os sítios possíveis. Não fazia mais ideia... Ao olhar o rapaz, o rosto dele mostrava distracção.

     - "Tu não és real!" - gritou ele.
     - "Ah? O que disseste?"
     - "Tu não és REAL!"
     - "Eu sou real! O que se passa contigo?"
     - "Tu não existes, o meu pai sempre me disse!"
     - "O teu pai? Desculpa, não posso perder mais tempo... Tenho que encontrar a minha irmã!"

     Maria sentiu-se frustrada e impaciênte com o rapaz. Tresandava a alcóol e não tinha servido de nada falar com ele. Continuou a procurar e a gritar. Mais ninguém passeava nas ruas. Estavam desertas.

     Pelos prédios da avenida ouviu-se um tremendo chiar de pneus de um automóvel descontrolado... Um forte estrondo de um impacto foi seguido de ruídos de metal e vidro estilhaçado, ecoando pelas ruas.

     Maria correu como nunca. O medo e a adrenalina tomaram as suas pernas.

     Um fumo denso e branco escapava do motor do carro. O alcatrão estava coberto de vidros e pequenos pedaços de metais e plásticos, também espalhados pela berma e pelo passeio. As marcas dos pneus estendiam-se por uns vinte metros de distância, entrelaçadas em zigue-zagues perigosos. O carro ensucatado baloiçava virado do avesso. Não havia nenhum condutor. Ao pé de um lago de combustível e óleos estava uma pequena sapatilha.

     Maria desesperou de medo ao perceber que a sua irmã estava sob o carro. Dores desconhecidas pressionavam-lhe a barriga e subiam pelo peito. Os seus braços e as suas pernas contraiam-se com tanta força que a faziam tremer. Não raciocinou nem por um segundo.

     Apertou as suas mãos nas juntas das portas e dobrou os joelhos. Centímetro a centímetro, a lateral do carro elevou-se no ar. Maria não se estava a aperceber do que tentava impossivelmente fazer. O metal do carro rangia contra o asfalto da estrada. Sentiu no seu corpo toda a sua força, uma energia química de adrenalina empurrar uma tonelada maciça. Sentiu todo o seu corpo esforçar-se até ao último momento. Por fim, quando o carro se revirou por si só, Maria caiu de joelhos, esgotada e absolvida. A sua irmã não mostrava sinais de vida...

     Maria acordou sobressaltada e nervosa.


- Manhã 10 de Janeiro -

     - Bom dia, mana - cumprimentou Carolina ao seu lado - Queres ver uma coisa?

     Maria olhou-a com curiosidade. Carolina contornou a cama até ao fundo dos pés. Agarrou com as duas mãos por debaixo e elevou a cama a cinquenta centímetros do chão durante breves segundos. Maria segurou-se perplexa.

     - Como fizeste isso? - perguntou, levantando-se da cama e segurando os braços da pequena.
     - Não sei. Mas sou forte agora - disse sorrindo.

     Maria não estava a acreditar no que acabara de assistir. Como é que uma menina tão frágil poderia ter a força para levantar uma cama com uma irmã deitada nela. Diversas perguntas passaram-lhe pela cabeça, algumas ainda mais confusas que as anteriores.

     Mas repensou. Há cinco meses atrás, ela própria havia revirado um automóvel. Não queria ter acreditado em nada daquilo!

     - Não contes nada aos pais. Prometido?
     - Porquê? - perguntou Carolina contente e desejada de o fazer.
     - Vou contar-te um segredo. Eu também tenho muita força como tu. Por isso não podemos contar nada a ninguém. Prometes?

     Carolina baixou os olhos de alguma decepção. Maria abraçou-a, desorientada.

     - Prometes? - perguntou, sorrindo.
     - Sim - prometeu, pensando na sua irmã.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 4
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- Há quatro meses e duas semanas atrás: -

     Gonçalo esperou pela oportunindade. Levantou-se da cama a meio da noite, vestiu uma bata de paciente e caminhou ligeiramente pelos corredores. Agarrou uns chinelos sobre um maca e aligeirou o passo. Nem pensou em usar as escadas. Uma janela do corredor dava acesso a um telhado abaixo, com altura suficiente para se saltar. Sem que alguém o podesse ver, subiu e saltou. Apoiando-se nos largos tubos de ventilação, desceu para uma zona privada. Esperou que não houvesse ninguém na rua e correu como o vento para longe das propriedades.

     Em questão de minutos, vários carros da polícia patrulhavam o centro da cidade. Correu para onde os seus pés o levavam. Provavelmente para casa, sem saber o que haveria de encontrar.

     Mantinha-se nas sombras, onde não podesse ser iluminado pelos candeeiros de estrada. Ao fundo da rua estava a sua casa. Ou o que dela restava. Gonçalo sentiu a sua garganta contorcer-se. Haviam metros de fita amarela que delimitavam uma área em perigo. Vergou-se passando por de baixo.

     "Que faço agora..." pensou incapacitado. Nesse instante ouviu um ruído. Baixou-se imediatamente para não ser visto. Entre os destroços, vagueava um jovem, vestido de roupas rotas, vasculhando.

     - Hei! Quem está ai? - falou o rapaz, assustado, apontando uma lanterna.

     Gonçalo levantou-se ofuscado pela luz, erguendo as mãos.

     - Hei! Quem és tu? Fugiste da prisão ou algo do gênero?
     - Vivia nesta casa! Que estás a fazer? Nada disto é teu! - Gonçalo sentiu-se indignado de momento.
     - Essa é boa! Todos os que viviam nesta casa morreram no incêndio!

     Gonçalo estremeceu de um arrepio mórbido. Ao dar um passo em frente, parte dos destroços suspensos desabaram atingindo-lhe o braço. A forte pancada desequilibrou-o, fazendo-o cair sobre o entulho. O rapaz, ao ter assistido, hesitou em fugir. Com cuidado, foi-se aproximando de Gonçalo. Uma lasca do tamanho de uma faca atravessava a superfície da pele.

     - Meu, deixa-me ajudar-te - disse o rapaz segurando o outro braço.

     De surpresa, um carro de patrulha iluminou a zona próxima em tons azuis e encarnados.

     - Rápido! Levanta-te!

     Os dois fugiram pela rua traseira, com o rapaz a guiar o caminho. Desceram uma outra rua que atravessava lotes de casas em construção, onde os dois se abrigaram. Durante a correria, Gonçalo tinha soltado a lasca de madeira. O rapaz curioso examinou.

     - Oh fod... - gaguejou.

     O braço de Gonçalo não estava mais ferido. Apenas via sangue derramado.

     - Como é que...?! - perguntou estupefacto.
     - Não sei, simplesmente sarou... - disse Gonçalo, também admirado.
     - Quem és tu? Porque é que estás vestido assim? - gritou ainda mais assustado.

     Gonçalo ressentiu.

     - Fugi do Hospital. Não sei o que se passa comigo... - Gonçalo pensou para si mesmo. Olhou para si mesmo. "Como não tenho nem uma cicatriz, nem uma queimadura, depois de tudo aquilo?"... "Que raio me fizeram aqueles médicos?"...

     Olhou em sua volta e agarrou um vidro estilhaçado das obras. Segurou-o firmemente e passou a outra mão sobre o vidro.

     - 'Tás maluco!!

     Gonçalo esfregou a mão para ver o corte. Os dois fixaram o olhar sobre o mesmo. Em menos de um minuto a ferida desaparecera.

     - Uoóóu!... - o rapaz paralizou de boca aberta.
     - Aquela casa era a minha casa. Fui o único que sobrevivi - disse, desconsolado. Os seus olhos inchavam.
     - Meu! Isto é de tolos. Eu tenho que desaparecer daqui!
     - Espera! - agarrando-o pelo braço - Estou a fugir à polícia! Tens que me ajudar!

     O rapaz notou a ferozidade com que Gonçalo falou. Não seria algo que faria por alguém, mas algo o fascinava naquela noite.

     - Só não me atrases!

     Gonçalo e o rapaz voltaram à estrada. Sempre atentos à polícia de patrulha.



     Gonçalo esticou a gola do casaco preto e da t-shirt. O ombro estava completamente sujo de sangue. Nem um arranhão, nem uma cicatriz. A ferida que tinha golpeado na rede farpada, enquanto fugia da polícia há minutos atrás, estava completamente curada.

     O comboio baloiçava gentilmente ao arrancar. Pousou a cabeça sobre o encosto e tentou descontraír-se. Adormeceu.

     - "Última paragem: Braga." - sem se aperceber do tempo, a voz electrónica na carruagem acordou Gonçalo. A viagem de quarenta minutos parecia ter passado em quarenta segundos. Por fim, estava em casa.

     Gonçalo saiu do comboio. Apenas mais um grupo de dez pessoas sairam de seguida. A Estação estava praticamente vazia. Enquanto percorria a plataforma de embarque para a saída, olhou um relógio. Marcava 23h36.

     Dois polícias permaneciam numa das saídas. Para evitar outra fuga, Mateus optou por se desviar para o interior de um shopping da Estação. Pelo outro lado, avistou e saiu por uma das portas de emergência.

     A caminhada era longa até ao centro da cidade. A noite arrefecia cada vez mais. Pelo caminho, Gonçalo tomou um corte por um atalho. Era um atalho estreito que seguia por uma escadas e um caminho em estrada paralelo, que no final, dava acesso a um bairro. Tratava-se de um bairro sossegado. Gonçalo, tirando partido da escuridão da noite, aproximou-se cautelosamente de um pequeno jardim na propriedade de uma simples casa branca. Observou atentamente a casa e o jardim. Calmamente agachou-se sobre o jardim de flores. Pequenas flores brancas. Gonçalo sentiu-se arrependido e infeliz... Relembrou.

     - "Meu, não achas perigoso de mais estarmos aqui, em pleno dia? Acabamos de roubar um carro!"
     - "Age com naturalidade. A cerimónia deve estar a terminar."
     - "É o funeral dos teus pais?"
     - "Sim..."
     - "Os meus pêsames..."
     - "Passaram duas semanas apenas, Fábio... Como vou suportar isto para o resto da vida?"

     Gonçalo reconhece os amigos de seu pai e de sua mão. No meio, está Mateus com a sua mãe. O seu melhor amigo. De entre todas as pessoas, foca a sua atenção numa menina que coloca uma flôr branca sobre a campa da sua irmã Adriana. De seguida, as pessoas vão se afastando e despedindo-se umas das outras. A cerimónia termina. Gonçalo fecha os olhos.

     - "Vamos."

     Esticando o braço, corta uma flôr do jardim da casa e envolve-a no seu casaco preto com cuidado.

     - Lamento imenso o que fiz - disse para si próprio, afastando-se da casa.

     Com algum do dinheiro que tinha no seu saco, usou-o para passar a noite num motel nos arredores da cidade. Poucas horas conseguiu dormir. Na tarde seguinte, Gonçalo percorreu a rua do seu bairro sem chamar a atenção. Parou e espreitou pelo muro. A casa de Mateus parecia vazia. Ao fundo podia ver os destroços da sua própria casa... No mesmo instante os portões da casa abriram-se automaticamente. Desviou-se e ligeiramente afastou-se até ao fundo da rua. Ao ter ouvido o chiar de travões, Gonçalo apressou em passo de corrida até ao atalho num corte entre vedações onde correu com toda a sua força para fugir de Mateus.

     A vergonha enchia-lhe os pulmões cada vez que respirava ofegante. "Ninguém pode saber que estou aqui, por agora. Não é nada seguro.", pensou. A melhor maneira seria encontrar-se apenas com o seu amigo.

     Mais tarde, Gonçalo visitou o cemitério.

     - Olá - disse baixinho - Sinto tanto a vossa falta... - abrindo o casaco, retirou a flôr branca. Ajoelhando-se, colocou-a sobre a relva que cobria o lugar da sua irmã. Gonçalo chorou... Sentia-se péssimo, abalado com o peso de um mundo inteiro sobre as suas costas. Não fazia a mínima ideia do que haveria de fazer. Pousou as mãos sobre a relva. Ergueu a cabeça e pensou no seu melhor amigo. Era altura de lhe contar tudo. Não aguentava mais esconder o seu segredo terrível.

     A noite tinha caído. Gonçalo voltava para o motel. Ao atravessar o parque do Hospital, ouviu uma voz que lhe abriu o peito.

     - Gonçalo!

     Era a voz de Mateus. Virou-se e olhou-o nos olhos. A mãe de Mateus fixou-o com um rosto de confusão. A mesma vergonha fez os seus pés saltarem e recuarem. Gonçalo fugiu mais uma vez.

     Ao chegar ao motel, despiu o seu casaco preto e colocou o saco de dinheiro sob o colchão. Deitou-se solitário sobre a cama, experimentando dores sentimentais que ardiam tanto como as queimaduras que havia sofrido há algum tempo.

O efeito do defeito - Mateus

Parte 4
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     - Mateus? - tentou Célia chamar a atenção dele.
     - Que se passa com ele? - perguntou Maria.

     Célia segurou os braços de Mateus e agitou-os com delicadeza.

     - Mateus!
     - Sim - respondeu ele, de volta à realidade.
     - O que lembraste?
     - Mãe, não foi esta rapariga em si que me fez delirar. Foi o pai! As lembranças do pai.

     Célia baixou os olhos e ergueu-os novamente para Mateus.

     - Falaremos disto mais tarde. Em casa, sim? - prometeu ela.

     Maria não entendia o que se passava. Entretanto, recebeu uma chamada.

     - Preciso de ir para o Hospital. A minha irmã recebeu hoje alta médica. Desculpem-me.
     - Maravilhoso - disse Célia com um sorriso - Vem connosco.
     - É muito gentil da vossa parte - Maria não tinha outra escolha senão em aceitar. Levaria muito tempo a chegar ao Hospital a pé e estava a entardecer.
     - Vem, queremos conhecer a tua irmã - disse Célia.
     - Muito obrigado - agradeceu.

     Entraram todos no carro. Durante a viagem, Mateus continuava a matotar nas lembranças do pai.

     Certo dia, em casa, Mateus está no seu quarto, isolado de todos. A sua cabeça fervilha de dores e emoções, memórias que prefere esquecer e que não o consegue fazer. Nesse momento, o seu pai entra.
     - "Filho? Posso?"
     - "Sim."
     - "O pai pode não ser médico como a mãe, nem ter uma profissão de respeito... Mas sabes que sempre te adorei. E adoro."

     Mateus nem olha.

     - "A mãe contou-me o que se passa contigo." - diz, ao sentar-se perto de Mateus.
     - "Mas não entendes o que se passa comigo, pois não?"
     - "Entendo sim, agora."

     Os dois permanecem em silêncio alguns minutos.

     - "Estarmos todos zangados não vai resolver nada..."

     Mateus olha cuidadosamente para o seu pai. O rosto dele é triste e sereno.

     - "Tenho um segredo para te contar." - a voz do seu pai é calma e verdadeira - "Quando era mais novo, os meus pais discutiam a toda a hora. Numa noite, o teu avô descarregou a ira sobre mim. Bateu-me como nunca o havia feito. Então, fugi de casa. Eu tinha um dom. Sonhava quando escrevia. Sonhava exactamente com o que escrevia antes de adormecer. Ao início era bom. Mas entusiasmava-me tanto que às vezes não tinha cuidado com o que escrevia..."
     - "Porque nunca me contaste isto antes?" - pergunta Mateus atento.
     - "Ouve. Entrei em paranóia com maior parte dos sonhos. Nenhum deles se realizava. Não passava tudo de mentiras e imaginação. Comecei a beber antes de adormecer. Nessas noites nunca sonhava. Infelizmente, não me controlei o suficiente... e entrei num ciclo de vício."
     - "Oh pai..."
     - "Nunca contei isto a ninguém, nem mesmo à mãe."

     Mateus sente empatia entre a pena. Finalmente encontrou algo em comum com o seu pai.

     - "Quando ela me contou o que se está a passar contigo, vi em ti o que via em mim. E agora entendo-te, filho. Existem coisas inexplicáveis. Mas existem. Um dia encontrarás uma forma de privar esse teu dom, se precisares, mas nunca abuses de ti próprio. Não corras o mesmo risco que eu."
     - "Agora percebo, pai. Mas isto não pode ser considerado um dom..."
     - "Um dia descobrirás que pode."

     O carro parou. Mateus voltou à realidade e apercebeu-se que se encontravam no parque do Hospital e era praticamente noite. Maria apressou-se a sair do carro. Célia olhou para Mateus.

     - Conta-me Mateus - pediu a mãe.

     Mateus tirou o cinto e colocou a mão no puxador da porta. Hesitou.

     - O pai tinha o mesmo problema que eu... - soltou, desabafando - Ou parecido. Foi dele de quem tirei a ideia de consumir alcóol para me livrar dos problemas... Não quero falar disso agora... - Puxou o puxador da porta e saiu do carro.

     Célia respirou fundo. Inconformada.

     Ao balcão da recepção, Maria deu os seus dados pessoais em troca de um cartão visitante.

     - Boa noite, Dr. Célia - cumprimentou a recepcionista.

     Todos subiram para o terceiro andar. Maria à frente. Ao fundo do corredor estava um médico.

     - Boa noite, Dr. Célia.
     - Boa noite, Dr, Jorge.

     Os dois médicos olharam-se no corredor, afastados, com uma leve desconfiança no rosto de cada um.

     - Como está a minha irmã? - perguntou Maria, impaciente.
     - Podem entrar. Ela é uma menina muito forte, superou as espectativas de todos - disse o médico.

     Uma enfermeira acabava de vestir a menina com um casaco branco. Maria entrou e abraçou a sua irmã. Mateus ficou à porta, encostado.

     - Manaa! - gritou a pequena.
     - Olá Carolina, sentes-te melhor?

     Mateus ouviu o nome da menina. "Carolina". Pareceu-lhe famíliar. Mas ver o rosto da menina foi como uma faísca que desencadeou uma outra lembrança.

     Apenas amigos de família do seu amigo Gonçalo está presente no funeral. Mateus e Célia assistem um pouco mais afastados. Todos fazem um momento de silêncio em memória de António Fernandes, - o pai - Augusta Fernandes, - a mãe - e de Adriana Fernandes - a irmã. Durante o final da cerimónia, enquanto todos sussurram sobre as mortes e o incidente, uma menina triste aproxima-se do lugar que simboliza a pequena Adriana. Mateus memoriza-a sentimentalmente. A pequena, ajoelhada, coloca uma flôr branca no relvado, junto à pedra.

     - "Vamos, Carolina" - chama uma rapariga mais velha.

     Mateus sobressaltou ao pé da porta. "Fora Maria quem havia chamado pela menina da flôr..." - pensou. "Ambos estivemos no funeral dos pais do Gonçalo." Ao pensar no nome do amigo, entristeceu.

     Relembrou, também, tê-lo visto fugir há algumas horas atrás, se não fosse imaginação sua.

     - Esta é a minha irmã, Carolina - disse Maria.
     - Olá - cumprimentou a pequena de sorriso no rosto.
     - Prazer em conhecer-te. O meu nome é Célia - apresentou-se a mãe de Mateus.

     Mateus olhou para o resto do quarto. Numa mesa pequena junto à cama havia uma jarra. Dentro, em água, estava uma flôr branca.

     - Olá - dirigiu-se Carolina para Mateus.

     Mateus voltou o olhar distraído e deu atenção à pequena.

     - Olá, como estás? - perguntou.
     - O médico disse que estou melhor e que posso voltar para casa - disse Carolina, terminando a frase com receio - Não és o menino que estavas no funeral da minha amiga Adriana? - perguntou inocentemente, com uma voz doce.

     Mateus sorriu. Parecia coincidência a troca de memórias.

     - Conhecias a Adriana? O irmão dela era meu amigo também.
     - Sim... - respondeu entristecendo. O seu rosto parecia transmitir lembranças. Uma mais aterrorizante em concreto.
     - Vamos para casa? - propôs Maria.

     Todos se despediram. Maria e Carolina permaneceram no Hospital por mais algum tempo.

     Mateus dirigiu-se para o carro. Célia seguia-o. Ao desviar o olhar, Mateus pressentiu alguém perto no parque. Seguiu o olhar nas sombras criadas pelas luzes dos candeeiros entre o muro e os automóveis. Das sombras saiu uma pessoa. Mateus tentou identificar.

     - Gonçalo! - gritou Mateus.

     A pessoa parou e olhou na sua direcção e, num segundo, desapareceu nas sombras. Mateus correu na direcção mas não havia mais ninguém. "Será mesmo verdade!", pensou ele, irritando-se consigo próprio. "Porque haveria ele de fazer isto?!".

     - Mateus? - chamou a mãe.
     - Eu tenho a certeza que era ele...
     - Foi a mesma pessoa que viste hoje? - perguntou convicta da situação.

     Mateus não sabia o que fazer. Não sabia o que falar. Havia tanto na sua cabeça para descarregar.

     - Talvez estejas a delirar por ele, filho. É muito improvável que ele tenha fugido do Hospital. Tu mesmo viste a ficha médica. Tu mesmo viste o estado dele...
     - Não sei, não sei... - Mateus sentia-se cansado e infeliz.

     Célia colocou a sua mão no ombro de Mateus.

     - Vamos para casa. É tarde...

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 3
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- Há cinco meses atrás: -

     A vida de Gonçalo dependia da velocidade dos bombeiros. A ambulância freou à porta das emergências, tocando as sirenes descontroladamente. O condutor saiu e abriu a porta traseira. Um outro auxiliar destrancou a maca, fazendo-a rolar pelos carris para fora do compartimento do veículo. Rapidamente se dirigiram para o interior do Hospital. Da ambulância saiu também a Doutora Célia, despertada pelo incidente.

     - Mas que estado, Santo Deus! Ainda... - a enfermeira horrorizou-se.
     - Recurremos aos primeiros socorros! Mas... - disse o auxiliar insatisfeito.
     - Esqueçam a triagem! - interrompeu um médico cirurgião - Levem-no já para o interior!

     A acompanhar a ambulância nas estradas, dois polícias preparavam-se para identificar Gonçalo. O médico interviu de imediato, entrando de seguida no bloco operatório.

     - Mãe - gritou Mateus.
     - Mateus... - Célia entristeceu ainda mais vendo o seu filho em sofrimento.

     Mateus não era capaz de dizer uma palavra que expressasse a perda que havia ocorrido.

     - Mãe - disse soluçando - Os pais dele...
     - Calma - Célia abriu os braços - Vem cá.

     Os dois abraçaram-se. Não havia consolo possível.

     Gonçalo lutava contra a vida. O seu ritmo cardíaco elevava-se para além do limite. As enfermeiras apenas podiam estancar o máximo possível de sangue, enquanto que o cirurgião tentava restaurar e salvar todos os orgãos vitais. Passaram horas e horas.

     Na manhã seguinte, o cirurgião saiu do bloco, sem grandes espectativas no seu rosto enrugado, cansado de uma das suas maiores lutas contra a morte.
     - Dr. Célia? - disse ele - Fizemos tudo o possível. Felizmente conseguimos equilibrar o seu estado.
     - Graças a Deus - respirou fundo - Muito obrigado, Dr. Jorge.
     - O jovem permanecerá em cuidados intensivos. Estimo, na minha opinião, que a recuperação será dolorosa e intemporal. Ele poderá ficar neste Hospital até restabelecer a consciência. Será mais tarde transferido para a Clínica de Recuperação.
     - Entendo. Eu mesma tratarei da transferência.
     - Desculpe perguntar, é seu famíliar?
     - Os seus pais eram amigos da minha família.
     - Lamento imenso.

     Célia voltou a sentar-se ao lado de Mateus, que dormia sobre duas cadeiras.

     - Mateus?

     Como se não estivesse a dormir, Mateus levantou-se num segundo.

     - Como está ele? - perguntou, esfregando a cara.
     - Neste momento, em recuperação - levantando-se - Vamos para casa.


- Dez dias mais tarde -


     - É fenomenal como a capacidade de regeneração deste jovem é acelerada. Se os meus cálculos estiverem correctos, ao fim de quatros dias estará totalmente sarado. - afirmou um médico alto e robusto.

     Gonçalo permanecia inconsciente. O seu corpo estava ainda ligado e engessado nas zonas mais críticas. Vários aparelhos monitorizavam e detalhavam cada processo de recuperação, batimento cardíaco, níveis de CO2, temperaturas e outros sinais vitais.

     No mesmo quarto encontravam-se mais dois médicos, o cirurgião Dr. Jorge e uma dermotologista.

     - É naturalmente impossível! - reafirmou Dr. Jorge.
     - Recapitulemos - disse o médico - O nosso paciente deu entrada no Hospital há dez dias. Encontrava-se inconsciente e com uma perda de sangue de quase cinquenta por cento. Queimaduras de segundo e terceiro grau em dois terços do corpo. Derivado da queda de um segundo andar partiu quatro costelas, o fêmur esquerdo foi quebrado em três zonas, os pulsos totalmente estilhaçados e os cinco centímetros de corte profundo no abdominal superior e no pulmão esquerdo que lhe causaram desmaio instantâneo. Sejamos realistas, este rapaz deveria ter sido considerado morto no local do acidente.
     - Impressionante - admirou a dermotologista - Os dados provam realmente. Não estamos a falar de um corpo vulgar. A percentagem de regeneração de tecidos deste indivíduo atingiu os duzentos por cento em cinco dias. Mas estou notavelmente surpresa com os mesmo dados em relação à composição óssea. Nunca me deparei com algo assim. Está praticamente curado!
     - Haverá explicação? - perguntou o Dr. Jorge.
     - Haverá, sim - o médico sorriu confiante - Muito obrigado pela vossa colaboração.

     Sozinho no quarto com Gonçalo, o médico pegou no telefone e ligou.

     - Está tudo preparado. Daqui a quatro dias serei capaz de correr a transferência do meu paciente. Já tens o equipamento a postos? - ouviu-se um silêncio que alterou o seu tom - Então trata disso! Não quero que nada corra mal. Poderemos ter em mãos uma cura que poderá salvar milhares! - o médico olhou pensativo e aproximou-se de Gonçalo - Este rapaz não tem ninguém. Perdeu toda a família. Ninguém sentirá a falta dele.

     Desligou o telemóvel. Reajustou o monitor por cima da cama de Gonçalo e saiu do quarto.

     Devagar e receoso, Gonçalo abriu os olhos. Tentou mexer as mãos mas elas não lhe respondiam. Desistiu sem uma segunda tentativa. Sem poder fazer algo, pensou. Pensou na conversa que havia ouvido do médico ao telefone. Aos poucos as suas memórias entravam no seu pensamento. O fumo. As chamas. Os seus pais e a sua irmã. O medo. E a queda. Gonçalo estava só. O desespero tomou conta dele.

     Um dos aparelhos tocou cada vez mais intermitente. Uma infermeira entrou no quarto.

     - Minha... Nossa! - balbuciou ao entrar.

     Tentou falar mas a sua garganta doía de queimaduras. As ligas em volta da sua cara faziam a pele por baixo formigar irritavelmente.

     Logo de seguida, o médico entrou. Atrás dele, Dr. Jorge seguiu-o. Não queria acreditar que havia acordado em tão pouco tempo.

     - Sê bem-vindo - alegrou-se Dr. Jorge. Não queria acreditar no que estava a ver. A sua carreira médica nunca lhe havia oferecido tal surpresa milagrosa. Nada fazia sentido, com tudo.
     - Como te sentes? - perguntou o médico misterioso.

     Dr. Jorge aproximou-se de Gonçalo.

     - Sou o director deste Hospital, deixa-me só ver como estás - colocou a sua mão sobre a cabeça de Gonçalo e abriu-lhe a boca cuidadosamente - Como previa, o fumo quente carbonizou grande parte das paredes da garganta. Voltar a falar talvez leve mais tempo.
     - Trataremos de ti o mais rápido possível, meu rapaz - sorriu o médico alto.

     Gonçalo observou de canto, hipnotizado pelas luzes que lhe batiam nos olhos. Sentiu o perigo no rosto do médico mais novo. Não sentia confiança nas suas palavras. Precisava ver alguém conhecido. Alguém em quem confiasse. Um amigo. O seu amigo Mateus.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 2
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- Há cinco meses atrás: -

     - Gonçalo, vá lá, vai deitar-te. É tarde.
     - Vou já, mãe. É só mais este programa - disse ele numa voz sonolenta.
     - Não te esqueças de desligar a televisão, sim? - pediu o pai enquanto se levantava do sofá.
     - Prometo, desta vez.

     Gonçalo aconchegou-se no mesmo sofá com mais discontracção ao ouvir a permissão dos pais.

     - Posso ver com o mano, mamã? - perguntou a sua irmãzinha.

     A mãe torceu o nariz em desaprovação.
     - Não, querida. Amanhã deves acordar cedo, sabes porquê?
     - Porque amanhã vamos à escola! - sorriu a menina ao responder.
     - Sim, vamos te inscrever para que não tarda possas aprender como os outros meninos.
     - E vai estar lá a Carolina também?
     - Sim, claro, filha.
     - Boa! - contentou-se.

     A menina apressou-se a subir as escadas em direcção ao seu quarto. Pausou por um momento.

     - Mano! Amanhã vou para a escola como tu e aprender mais! Ahah - gracejou num tom doce de entusiasmo.

     Gonçalo observou a irmã por cima do ombro e deitou a língua de fora. Depois sorriu virado para a televisão.
     - Boa noite! - gritou a pequena correndo pelas escadas.
     - Boa noite, filho - despediu-se a mãe.
     - Boa noite.

     As luzes foram todas desligadas.

     - Pai? - chamou-o antes que subisse também - Emprestas-me o carro para o próximo fim-se-semana? - Gonçalo fez um ar de esperanças sobre o seu pai, na tentativa de o convencer daquela vez.
     - Acho que já discutimos sobre isso.
     - Vá lá, pai - insistiu.
     - Não é por saberes conduzir com cuidado que te dê a responsabilidade de o fazer.
     - Eu sei, pai, mas seria importante para mim. Todos os meus amigos vão levar o seu carro. E eu prometo que não abusarei nem beberei nenhuma bebida. Prometo!

     O pai lançou um olhar pensativo.
     - Mas só desta vez...
     - Obrigado pai! - agradeceu Gonçalo, emocionado - És o melhor pai do mundo!

     Subiu em seguida para se deitar, igualmente. Gonçalo permaneceu na sala. O programa televisivo prolongou-se mais duas horas. A essa altura todos dormiam descançados. O silêncio reinava a casa.

     O andar de baixo da casa emanava um fumo negro pelas escadas e condutas acima.
     O andar de cima ardia infernamente.

     Um grito agudo e aflitivo percorreu a casa como um alarme. Gonçalo acordou sobressaltado!

     A sala de estar no andar de baixo, onde relaxado tinha adormecido a ver televisão, enevoeirava um manto denso e sofucante de fumo sob o tecto. As sombras luminosas das chamas erguiam-se e desapareciam em clarões fervorosos nas paredes da sala até à cozinha, grunhindo ruídos típicos de um incêndio alastrado.

     Levantando-se abalado, correra em socorro da sua família.

     - MÃE! - gritou em desespero...

     Por entre a invisibilidade e a escuridão subiu as escadas até aos quartos. As paredes rachavam com o próprio peso. A primeira porta à direita dava acesso ao quarto dos pais...

     - PAI! - gritou uma vez mais...

     As chamas deflagravam o quarto impiedosamente. O tecto deste rugiu, no instante em que desabou sobre o centro projectando centenas de lascas e farpas incandescentes numa bola de fumo e destroços. Gonçalo esquivou-se no último instante, atirando-se para o chão protegendo a cabeça com os braços.
     O calor mordia-lhe as pernas. Vociferava em ardor. O seu pijama estava em chamas. Rebolou o corpo sobre si mesmo e esfregou com a mais freneticidade que as suas mãos lhe conseguiam oferecer para afastar as chamas. Usou de seguida a carpete com que se enrolou para abafar as mesmas.

     Ergueu-se apoiando o ombro na parede. Tossia por ar fresco. Gonçalo persistiu ainda pelo último quarto, gatinhando pelo corredor junto o mais possível ao chão, onde o fumo não era tão denso.

     "Por favor...", disse, suplicando em sofrimento. A porta estava fechada. O calor irradiava uma luz esplandorosa por entre as frinchas, parecendo sufocar-se dentro do quarto. O nome "Adriana" estava pendurado na porta. Levantando-se, cansado e quase incapacitado pelas dores das queimaduras, abriu a porta rápido de mais...

     O fumo negro que pairava no corredor entrou pelo quarto em chamas como uma serpente viva e feroz. Houve um momento de explosão. A pressão do ar quente descomprimiu-se e alastrou-se pelo corredor num ápice, arremessando Gonçalo contra a porta do seu quarto, oposto ao do da sua irmã. Ouviram-se estilhaços de vidros de janelas quebrarem-se e lascas de madeira trespassarem tecidos e paredes. As altas temperaturas bastavam para queimar a pele.

     Por fim, Gonçalo fora vencido pela natureza da sobrevivência. O seu instinto levou-o mais uma vez a resistir. Não havia mais nada em que podesse pensar. Entrou no seu quarto, arrastando-se debilmente. As chamas tinham encontrado um novo lugar para consumirem. Içou o seu corpo, apoiando-se sobre a cama, depois contornou-a e aproximou-se da janela. Esta estava aberta.
     Era uma noite escura. Ouviam-se gritos de desespero dos vizinhos. Sirenes sonoras de bombeiros chegavam do horizonte. Uma bizarra loucura que enchia o peito de medo e sofrimento.

     Gonçalo não hesitou. Olhou a estrada e saltou para se salvar.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 1
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     - Sabes que não podes voltar a casa!
     - Não me digas o que eu não posso fazer! - respondeu gritando. Gonçalo retirou um pequeno saco debaixo de um colchão velho. Dentro continha uma quantia valiosa em dinheiro. - Isto deve chegar.
     - Hei! Esse dinheiro também é meu! - reclamou o seu companheiro.
     - É a única maneira de eu voltar para casa...

     Gonçalo sentou-se no colchão puído que rangeu sobre as molas. Vestia com ele roupas velhas e desfeitas. Vivia com um sem abrigo de nome Fábio que o ajudou a sobreviver nas ruas. Ambos roubavam em troca de alimentos e novas roupas. Dormiam por vezes em casas abandonadas ou em ruas por onde ninguém passava. Os dois estiveram juntos praticamente quatro meses.
     Precisava de voltar a casa.

     - Já passou tempo necessário...
     - Estás maluco dessa cabeça? Tu lembras o que aconteceu há cinco meses? A polícia ainda deve andar em cima de nós! Atropelamos uma menina com um carro roubado!

     Gonçalo permaneceu petrificado.

     - Para não falar que fugiste do Hospital! Ainda me custa acreditar o que te aconteceu... - Fábio agachou-se perto do amigo - Tu tiveste muita sorte, se é que se possa chamar de isso.

     Gonçalo relembrou.

     Numa noite de Agosto, um terrível incêndio havia destruído o seu lar e família. Gonçalo na tentativa de escapar correra pela casa em chamas, atirando-se num acto impensável da janela de um quarto para a rua para se salvar. A queda tinha sido quase fatal. Permanecera inconsciente, deitado na fria estrada, até ter sido resgatado pelos bombeiros e ser levado para o Hospital. Seus pais tinham morrido sem se terem apercebido da catástrofe, contavam os polícias.
     Milagrosamente o seu corpo sarava numa rapidez exponencial. Testes sobre testes, estava a ser submetido a um desumano interesse próprio de médicos cientistas. Eles queriam respostas a todo o custo. Gonçalo vira-se na necessidade de fugir e se esconder.

     - Tive muita sorte mesmo, foi em te ter encontrado. Havemos de ajudar de alguma forma a família da menina... - ressentiu Gonçalo.
     - Se é a tua vontade a de voltar, força. Mas eu não posso. Ainda tenho assuntos pendentes aqui.
     - E eu voltarei para te ajudar. Havemos de terminar esses "assuntos" um dia.

     Fábio sentou-se por fim no chão.

     - Tu conhece-los. São osso duro de roer e não nos vão deixar descançados nunca...
     - Arranjaremos uma forma - aliviou Gonçalo - Tenho que partir já.

     Fábio levantou-se energeticamente, ofereceu a sua mão ainda coberta de ligas manchadas e ajudou Gonçalo a levantar-se também. Os dois cumprimentaram-se à maneira das ruas.

     - Podes levá-lo todo. Não vou precisar desse dinheiro.
     - Fico-te agradecido. Devolver-te-ei.
     - Espero bem que sim - disse Fábio, sorrindo - toma cuidado.
     - Sabes bem que eu não preciso ter cuidado.
     - Mas é sempre educado da minha dizer isto - piscando o olho.

     Gonçalo meteu ao bolso o pequeno saco com o dinheiro e pegou num casaco preto que havia sido roubado a semana passada. Saiu pela porta das traseiras da casa ainda em obras e seguiu a estrada em direcção à estação ferroviária.

     A noite estava calma. Poucos automóveis circulavam nas ruas dos bairros. Gonçalo caminhava decidido e confiante pela ruela abaixo, faltando mais uns quatro quarteirões até à estação.
     - Não é possível! - gritou um indivíduo entre um grupo de seis.
     - Devias estar morto!

     Gonçalo hesitou e parou. Quando se apercebeu do perigo já o grupo lhe barrava a passagem.

     - Meu! Eu enfiei-te duas balas nesse peito! - afirmou o mais corpulento e líder do grupo, dando um passo à frente.
     - Talvez nem tenhas acertado - Gonçalo respondeu audazmente.
     - Estás a tripar comigo? Ah? - alteou a voz aproximando-se mais.
     - Não, MD, estou só a dizer que falhaste os tiros.

     Gonçalo tinha que arranjar um forma de escapar ao bando. Estava em desvantagem desta vez. Ao fundo da ruela um carro de patrulha parou à saída com as luzes ligadas. O grupo não entrou em pânico mas a presença da polícia alertou-os. Dois capangas separam-se do grupo para encostarem-se à vedação de um terreno, folgando um espaço para Gonçalo se esquivar.

     - Estás mesmo a tripar comigo, filho da p...!
     - Merda MD, a bófia! - sussurou um outro.
     - Fodasse! - praguejou - Mas nem a bófia te salva o couro desta vez. Tu e o teu amiguinho ainda me devem os cinco mil! - continuou furioso.

     O medo abraçava o peito de Gonçalo. O carro de patrulha não parecia ter reparado neles, continuando o seu caminho.

     PAAAM! Ouviu-se um disparo tremendo. Tanto Gonçalo como o bando agacharam-se em protecção. O carro de patrulha ligou imediatamente as sirenes sonoras e dirigiu-se para a ruela. O bando dividiu-se, cada um por si, e fugiram em várias direcções. Gonçalo correu velozmente saltando a vedação atravessando as propriedades vizinhas para escapar à polícia. Continou a correr até ter deixado de ouvir as sirenes.

     - Porra! - queixou-se ao golpear-se na segunda rede, esta farpada. O sangue escorreu em segundos pelo braço até à mão, manchando o casaco preto.

     Ao chegar à estação, apressou-se para as casas de banho públicas sem que alguém reparasse. Tirou o casaco e atirou-o para o chão. O corte no ombro era pouco profundo mas as dores eram mais. Lavou o ombro durante alguns minutos até que o sangue estancou. A ferida cicatrizou-se aos olhos de Gonçalo que observava pelo espelho sujo na parede. Por mais vezes que ele assistisse ao mesmo fenómeno, Gonçalo deixava-se impressionar pela incompreensibilidade.
     Por fim enxaguou a manga do casaco, tirando o sangue e o odor.

     O comboio que esperava chegou à estação. Partia em dez minutos. Escolheu um lugar numa carruagem mais vazia de gente. Um operário aproximou-se.
     - Bilhete, por favor?
     - Ahh... - figindo se ter esquecido apalpou os bolsos. Retirou algumas moedas do bolsoe contou - Não tenho bilhete...
     - Da próxima vez tem que o comprar na bilheteira. Destino?
     - Braga - respondeu Gonçalo.
     - São 2,50€. Boa viagem.

O efeito do defeito - Mateus

Parte 3
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     - Não tem sido fácil, sabes? O Mateus é simplesmente uma dádiva. Tenho cumprido a promessa que te fiz. O teu filho tem crescido muito e fez muitas asneiras. Mas o que tu lhe chamavas de dom está a tornar-se cada vez mais um fardo, para ele e para mim... - Célia abriu os olhos e deparou-se com o tecto do seu quarto. Um quarto vazio mas suscito de algumas recordações. Uma pequena moldura segurando uma fotografia de casamento e uma outra mais jovem na parede de frente para a cama - Sinto a tua falta. E ele também...

     Mateus descansava no seu quarto. Ao lado da cama havia uma enorme estante repleta de livros de ensino e variados. Todos eles lidos e etiquetados pessoalmente. No lado oposto havia uma mesa onde estava o portátil ligado, mais uns quantos livros e alguns CD's de música abertos recentemente... Deitou-se na cama e colocou os auriculares nos ouvidos. "Conseguirei memorizar muitas mais músicas? Talvez nem venha a precisar mais deste leitor...", pensou Mateus.

     "Hoje à noite conhecerei a rapariga que há muito tempo terei visto inconsciente. Há precisamente cinco meses e dois dias. Sinto-me nervoso. Tenho medo de a ver e não conseguir assimilar que seja verdadeira e real. Quão será ela diferente dela própria na minha versão imaginária? Terá a mesma personalidade? Não, é impossível." - Mateus pensava questionadamente. Mal prestava atenção às músicas que no entanto a sua mente as absorvia numa fluidez competente. Nenhum pormenor escapava à sua capacidade de reter memórias objectivas.

     "Que efeito terá ela em mim, que na primeira vez que nos cruzamos me deixou assim? Será que sentirei esse efeito novamente, como o sinto nos meus sonhos?" - Mateus continuava a interrogar-se - "Maldita hora em que decidi beber. Mais cedo ou mais tarde o alcóol não limitaria o meu dom, estavas errado pai..."

     Mateus levantou-se da cama.
     Célia já se encontrava na sala a arrumar o seu casaco para sair.

     - Vamos Mateus. É hora de irmos.

     Não disse uma palavra.

     Os dois entraram no carro e colocaram os cintos. Os portões abriram-se automaticamente. Assim que passaram os portões, Mateus olhou de relance para o fundo da rua e viu alguém que caminhava no sentido oposto. Era-lhe famíliar. O andar, o movimento da locumoção, a roupa. Era o seu amigo Gonçalo. O seu amigo de infância que todos pensavam ter desaparecido.

     - Pára o carro, mãe! - gritou brutalmente.

     O carro mal havia parado. Mateus desatou a correr em direcção ao amigo que virou imediatamente por um corte entre vedações. Tentou segui-lo mas ao chegar tarde ao corte o amigo já havia desaparecido. Correu até ao outro lado na chance de o reaver. Nada. Acalmou a respiração e voltou para trás, olhando pelo ombro para os lados. Célia veio ao seu encontro.

     - Que passou? O que viste?
     - Nada mãe, estou a elouquecer!

     Célia observou-o com um olhar reprovador pela expressão dita.

     Os dois voltaram ao carro e Mateus não falou sobre o assunto o resto da viagem. Apenas pensou para si próprio como o sempre fez.

     A viagem não foi longa.
     Estacionaram o automóvel no parque perto da morada onde vivia a rapariga com que imaginava. Era uma casa simples num bairro aparentemente sossegado. Mateus não tirou o cinto. Apenas olhava pela janela para a casa do outro lado da rua, pensativo.

     - Queres falar-me primeiro do que aconteceu há vinte minutos atrás?
     - Mais tarde - respondeu conformado - Pode ser?
     - É justo. Sei que não queres adiar este momento.

     Mateus baixou o olhar até aos joelhos.

     - Sinceramente... Não tenho a certeza.
     - Disseste-me que seria importante para ti se te interligasses com a rapariga. Esta é a altura. E eu estou aqui para te ajudar. E eu falarei a maior parte do tempo.

     Célia sorriu. Os dois saíram do carro em direcção à porta da frente. Mateus olhou para o lado, atencioso para um pequeno jardim de flores brancas.

     - Quem é? - perguntou uma voz masculina após terem batido à porta.
     - Sou a Dr. Célia da Neurologia na cidade e este é o meu filho Mateus. Gostariamos de falar com a sua filha se fosse possível.
     - A minha filha não está!

     Ambos olharam-se. Mateus sentiu um choque breve de memórias. Célia insistiu.

     - Poderia combinar-nos uma hora para que nos podessemos encontrar com ela?
     - Não! - respondeu o homem, grosseiro - E mesmo que ela estivesse em casa também não a deixaria falar consigo. Vão-se embora!

     Célia não insistiu e virou costas.

     - Que rude!

     Mateus nem deu atenção e voltou para trás. Ao chegar perto do automóvel algo o surpreendeu.

     - Querido? - perguntou a mãe.
     - Há quanto tempo não nos temos visto até agora? - perguntou ele para a rapariga que se encontrava escondida do outro lado do carro.
     - Desculpa? - perguntou confusa.

     Célia não se aproximou mas permaneceu cuidadosa.
     - Estou a vê-la, meu querido. É real. Não estás a imaginar...

     Mateus tornou-se eufórico por dentro. Quase incrédulo. Mas seguramente lúcido. Ficaram quietos por uns intantes.

     - Desculpem o meu pai. Ele fica um pouco rabugento quando bebe demais - disse a rapariga olhando para Mateus, quebrando o silêncio.

     A rapariga virou os olhos num acto de reflexão. Voltou-os para Mateus e por fim, reconhecendo-o, aproximou-se dele.

     Ele continuava perplexo e sem fala. Algo na sua cabeça funcionava à velocidade da luz. Até que, instantes depois, cessou. Nada havia para pensar.

     - Mateus? - chamou a jovem numa voz doce.

     Mateus engoliu em seco.

     - Como sabes o meu nome? - perguntou, tentando lembrar-se das vagas memórias.
     - Tu disseste-me o teu nome, lembras? E que irias ajudar-me a encontrar a minha irmã.
     - Desculpa-me, mas não faço mesmo ideia do que aconteceu nem me recordo de absolutamente nada. Eu nem sei o teu nome...
     - Que se passa contigo? - perguntou a jovem num tom leve de fúria - Naquela noite parecias hipnótizado ou algo do gênero. E o que falavas não fazia sentido nenhum. Mas...

     Célia aproximou-se interrogada.

     - O que falava ele? - interrompeu.
     - Mas... Quem é a senhora?
     - Sou a mãe do Mateus. Por favor. O meu filho precisa da tua ajuda para recompôr as peças que lhe faltam dessa noite. É importante sabermos o que ele falou ou fez nessa noite.
     - Tem amnésia o seu filho?
     - Não. É mais... diferente - Célia tentou abrir-se com o "assunto" mas tornaria a conversa mais incompreensiva.

     A rapariga repensou no que iria dizer. A palavra "diferente" tocou-lhe como um sino de metal nos ouvidos. Respirou e continuou calma.

     - Ele simplesmente tornou-se diferente em segundos. Num momento estava a tentar ajudar-me e logo a seguir começou a falar coisas estranhas. Que eu não era real.

     Mateus apercebeu-se. As peças estavam a encaixar-se. Algo fazia sentido para ele.

     - Eu estava aflita e nervosa e não quis perder mais tempo. A minha irmã tinha sido atropelada momentos depois... - a rapariga baixou os olhos, quase em lágrimas.
     - Lamento imenso... - lamentou-se Célia.
     - Ela está a recuperar, felizmente - sorriu leve - O meu nome é Maria.

     Mateus olhou instantaneamente o vazio quando sentiu um outro choque de memórias.

     Nelas, ele encontra-se embriagado pela cidade como todas as noites naquela altura. Há uma rapariga com quem se cruza na escuridão, Maria, desesperada em busca da sua irmã pelas ruas. Ele tenta acompanhar e entender o que ela soluça em palavras.

     - "Calma, respira fundo. Como te chamas?"
     - "Maria... Por favor, ajuda-me a procurar a minha maninha!"
     - "Maria, sou o Mateus. Que se passa?"
     - "A minha irmã fugiu de casa... Porque... os meus pais discutiram... e ele bateu-lhe..."
     - "Meu Deus... Maria, onde achas que ela pode ter ido?"

     É aí que o seu alcoolizado raciocínio entra em colapso.

     - "Tu não és real!" - afirma Mateus.
     - "Ah? O que disseste?"
     - "Tu não és REAL!"
     - "Eu sou real Mateus. O que se passa contigo?"
     - "Tu não existes, o meu pai sempre me disse!"
     - "O teu pai? Desculpa, não posso perder mais tempo..."

     Pelos prédios da avenida ouvem-se o chiar de pneus de um automóvel descontrolado... E a memória termina.

     Mateus completou as suas memórias escondidas. "Não foi esta rapariga, Maria, ou algum efeito que ela tivesse em mim, que me fez despertar os delírios. Foram as lembranças do meu pai..." - reflectiu.
 

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