Rafael Braga

O efeito do defeito - Maria

Parte 4
_____________________________________________________________________________________

     - Para Lamaçães, por favor - disse Maria para o taxista.

     O carro, parado à frente do Hospital, arrancou. Para trás, ficavam apenas meses de tristeza.

     - Vamos para casa - disse em tom carinhoso para a sua irmã, Carolina.
     - Sim - respondeu. O seu olhar era vazio.

     Ao chegarem a casa, Carolina dirigiu-se directamente para o seu quarto. Maria fez uma paragem na cozinha e foi logo ter com ela.

     - Posso entrar?
     - Entra , mana.
     - Deves ter fome. Trouxe o teu chocolate preferido - Maria mostrou a embalhagem e colocou-a sobre a cama.
     - Não tenho fome - Carolina deitou-se sobre a cama e afastou o chocolate.

     Maria não insistiu. Pegou no chocolate e colocou na mesinha ao lado da cama. De seguida deitou-se paralela a sua irmã. As duas permaneceram caladas por breves instantes.

     - É giro, ele - sorriu Carolina.
     - Quem? - perguntou Maria, disfarçando a picada de embaraço.
     - Aquele rapaz com quem estavas no Hospital. Mateus.
     - Acho que sim - disse, entrelaçando os dedos - Mas é um pouco estranho, não sei. É tão misterioso que me fez recear...

     Carolina remexeu-se na cama. Maria aconchegou-a, subindo o cobertor sobre a irmã e ela própria. O cansaço pesava-lhe nas pálpebras. Ambas adormeceram...

     Maria sonhou.

     O céu cinzento ilustrava perfeitamente o ambiente da cerimónia. Todos usavam as suas roupas pretas. Maria sentia-se desconfortável. Ouviam-se pequenos soluços e choros. As vozes das conversas particulares dos amigos da família pairavam com aspecto de serem assombrosas. O verdadeiro espírito de um funeral. Destestava.
     Maria e Carolina foram mais cedo para casa, reencontrando-se ao fim da noite com os pais.
     A chegada deles desenvolveu-se em críticas e desordem. A mãe tentava gritar ainda mais alto. O pai ficava cada vez mais furioso. Discutiam sem saberem mais a razão.

     - "Parem!" - gritou Carolina segurando o braço de cada um.

     Descontrolado e cego pela discussão, o pai bufeteou a menina, atirando-a para o chão. A mãe depressa a afastou em sua protecção, Mas os dois encontraram um motivo maior para continuarem a brigar.

     Carolina saiu de casa a chorar. Ao ouvir toda aquela gritaria, Maria desceu do seu quarto. Não encontrava a sua irmã. Num momento, todos pararam na realidade. Inquietos, sairam em busca da menina.

     Maria correra pela estrada fora, gritando o nome da irmã.

     Passou uma hora, sem haver um sinal.

     Ao fundo de uma rua, desesperada avistou um rapaz.

     - "Desculpa..." - disse, ganhando folgo - "Não viste uma menina de 6 anos? Loira e com um casaco branco..."
     - "Quê?"
     - "Uma rapariga... desta altura, loira... É a minha irmã..."
     - "Calma, respira fundo. Como te chamas?"
     - "Maria... Por favor, ajuda-me a procurar a minha maninha!"
     - "Maria, sou o Mateus. Que se passa?"
     - "A minha irmã fugiu de casa... Porque... os meus pais discutiram... e ele bateu-lhe..."
     - "Meu Deus..., onde achas que ela pode ter ido?"

     Maria tinha procurado em todos os sítios possíveis. Não fazia mais ideia... Ao olhar o rapaz, o rosto dele mostrava distracção.

     - "Tu não és real!" - gritou ele.
     - "Ah? O que disseste?"
     - "Tu não és REAL!"
     - "Eu sou real! O que se passa contigo?"
     - "Tu não existes, o meu pai sempre me disse!"
     - "O teu pai? Desculpa, não posso perder mais tempo... Tenho que encontrar a minha irmã!"

     Maria sentiu-se frustrada e impaciênte com o rapaz. Tresandava a alcóol e não tinha servido de nada falar com ele. Continuou a procurar e a gritar. Mais ninguém passeava nas ruas. Estavam desertas.

     Pelos prédios da avenida ouviu-se um tremendo chiar de pneus de um automóvel descontrolado... Um forte estrondo de um impacto foi seguido de ruídos de metal e vidro estilhaçado, ecoando pelas ruas.

     Maria correu como nunca. O medo e a adrenalina tomaram as suas pernas.

     Um fumo denso e branco escapava do motor do carro. O alcatrão estava coberto de vidros e pequenos pedaços de metais e plásticos, também espalhados pela berma e pelo passeio. As marcas dos pneus estendiam-se por uns vinte metros de distância, entrelaçadas em zigue-zagues perigosos. O carro ensucatado baloiçava virado do avesso. Não havia nenhum condutor. Ao pé de um lago de combustível e óleos estava uma pequena sapatilha.

     Maria desesperou de medo ao perceber que a sua irmã estava sob o carro. Dores desconhecidas pressionavam-lhe a barriga e subiam pelo peito. Os seus braços e as suas pernas contraiam-se com tanta força que a faziam tremer. Não raciocinou nem por um segundo.

     Apertou as suas mãos nas juntas das portas e dobrou os joelhos. Centímetro a centímetro, a lateral do carro elevou-se no ar. Maria não se estava a aperceber do que tentava impossivelmente fazer. O metal do carro rangia contra o asfalto da estrada. Sentiu no seu corpo toda a sua força, uma energia química de adrenalina empurrar uma tonelada maciça. Sentiu todo o seu corpo esforçar-se até ao último momento. Por fim, quando o carro se revirou por si só, Maria caiu de joelhos, esgotada e absolvida. A sua irmã não mostrava sinais de vida...

     Maria acordou sobressaltada e nervosa.


- Manhã 10 de Janeiro -

     - Bom dia, mana - cumprimentou Carolina ao seu lado - Queres ver uma coisa?

     Maria olhou-a com curiosidade. Carolina contornou a cama até ao fundo dos pés. Agarrou com as duas mãos por debaixo e elevou a cama a cinquenta centímetros do chão durante breves segundos. Maria segurou-se perplexa.

     - Como fizeste isso? - perguntou, levantando-se da cama e segurando os braços da pequena.
     - Não sei. Mas sou forte agora - disse sorrindo.

     Maria não estava a acreditar no que acabara de assistir. Como é que uma menina tão frágil poderia ter a força para levantar uma cama com uma irmã deitada nela. Diversas perguntas passaram-lhe pela cabeça, algumas ainda mais confusas que as anteriores.

     Mas repensou. Há cinco meses atrás, ela própria havia revirado um automóvel. Não queria ter acreditado em nada daquilo!

     - Não contes nada aos pais. Prometido?
     - Porquê? - perguntou Carolina contente e desejada de o fazer.
     - Vou contar-te um segredo. Eu também tenho muita força como tu. Por isso não podemos contar nada a ninguém. Prometes?

     Carolina baixou os olhos de alguma decepção. Maria abraçou-a, desorientada.

     - Prometes? - perguntou, sorrindo.
     - Sim - prometeu, pensando na sua irmã.

0 comentários:

Enviar um comentário

 

Seguidores