Rafael Braga

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 4
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- Há quatro meses e duas semanas atrás: -

     Gonçalo esperou pela oportunindade. Levantou-se da cama a meio da noite, vestiu uma bata de paciente e caminhou ligeiramente pelos corredores. Agarrou uns chinelos sobre um maca e aligeirou o passo. Nem pensou em usar as escadas. Uma janela do corredor dava acesso a um telhado abaixo, com altura suficiente para se saltar. Sem que alguém o podesse ver, subiu e saltou. Apoiando-se nos largos tubos de ventilação, desceu para uma zona privada. Esperou que não houvesse ninguém na rua e correu como o vento para longe das propriedades.

     Em questão de minutos, vários carros da polícia patrulhavam o centro da cidade. Correu para onde os seus pés o levavam. Provavelmente para casa, sem saber o que haveria de encontrar.

     Mantinha-se nas sombras, onde não podesse ser iluminado pelos candeeiros de estrada. Ao fundo da rua estava a sua casa. Ou o que dela restava. Gonçalo sentiu a sua garganta contorcer-se. Haviam metros de fita amarela que delimitavam uma área em perigo. Vergou-se passando por de baixo.

     "Que faço agora..." pensou incapacitado. Nesse instante ouviu um ruído. Baixou-se imediatamente para não ser visto. Entre os destroços, vagueava um jovem, vestido de roupas rotas, vasculhando.

     - Hei! Quem está ai? - falou o rapaz, assustado, apontando uma lanterna.

     Gonçalo levantou-se ofuscado pela luz, erguendo as mãos.

     - Hei! Quem és tu? Fugiste da prisão ou algo do gênero?
     - Vivia nesta casa! Que estás a fazer? Nada disto é teu! - Gonçalo sentiu-se indignado de momento.
     - Essa é boa! Todos os que viviam nesta casa morreram no incêndio!

     Gonçalo estremeceu de um arrepio mórbido. Ao dar um passo em frente, parte dos destroços suspensos desabaram atingindo-lhe o braço. A forte pancada desequilibrou-o, fazendo-o cair sobre o entulho. O rapaz, ao ter assistido, hesitou em fugir. Com cuidado, foi-se aproximando de Gonçalo. Uma lasca do tamanho de uma faca atravessava a superfície da pele.

     - Meu, deixa-me ajudar-te - disse o rapaz segurando o outro braço.

     De surpresa, um carro de patrulha iluminou a zona próxima em tons azuis e encarnados.

     - Rápido! Levanta-te!

     Os dois fugiram pela rua traseira, com o rapaz a guiar o caminho. Desceram uma outra rua que atravessava lotes de casas em construção, onde os dois se abrigaram. Durante a correria, Gonçalo tinha soltado a lasca de madeira. O rapaz curioso examinou.

     - Oh fod... - gaguejou.

     O braço de Gonçalo não estava mais ferido. Apenas via sangue derramado.

     - Como é que...?! - perguntou estupefacto.
     - Não sei, simplesmente sarou... - disse Gonçalo, também admirado.
     - Quem és tu? Porque é que estás vestido assim? - gritou ainda mais assustado.

     Gonçalo ressentiu.

     - Fugi do Hospital. Não sei o que se passa comigo... - Gonçalo pensou para si mesmo. Olhou para si mesmo. "Como não tenho nem uma cicatriz, nem uma queimadura, depois de tudo aquilo?"... "Que raio me fizeram aqueles médicos?"...

     Olhou em sua volta e agarrou um vidro estilhaçado das obras. Segurou-o firmemente e passou a outra mão sobre o vidro.

     - 'Tás maluco!!

     Gonçalo esfregou a mão para ver o corte. Os dois fixaram o olhar sobre o mesmo. Em menos de um minuto a ferida desaparecera.

     - Uoóóu!... - o rapaz paralizou de boca aberta.
     - Aquela casa era a minha casa. Fui o único que sobrevivi - disse, desconsolado. Os seus olhos inchavam.
     - Meu! Isto é de tolos. Eu tenho que desaparecer daqui!
     - Espera! - agarrando-o pelo braço - Estou a fugir à polícia! Tens que me ajudar!

     O rapaz notou a ferozidade com que Gonçalo falou. Não seria algo que faria por alguém, mas algo o fascinava naquela noite.

     - Só não me atrases!

     Gonçalo e o rapaz voltaram à estrada. Sempre atentos à polícia de patrulha.



     Gonçalo esticou a gola do casaco preto e da t-shirt. O ombro estava completamente sujo de sangue. Nem um arranhão, nem uma cicatriz. A ferida que tinha golpeado na rede farpada, enquanto fugia da polícia há minutos atrás, estava completamente curada.

     O comboio baloiçava gentilmente ao arrancar. Pousou a cabeça sobre o encosto e tentou descontraír-se. Adormeceu.

     - "Última paragem: Braga." - sem se aperceber do tempo, a voz electrónica na carruagem acordou Gonçalo. A viagem de quarenta minutos parecia ter passado em quarenta segundos. Por fim, estava em casa.

     Gonçalo saiu do comboio. Apenas mais um grupo de dez pessoas sairam de seguida. A Estação estava praticamente vazia. Enquanto percorria a plataforma de embarque para a saída, olhou um relógio. Marcava 23h36.

     Dois polícias permaneciam numa das saídas. Para evitar outra fuga, Mateus optou por se desviar para o interior de um shopping da Estação. Pelo outro lado, avistou e saiu por uma das portas de emergência.

     A caminhada era longa até ao centro da cidade. A noite arrefecia cada vez mais. Pelo caminho, Gonçalo tomou um corte por um atalho. Era um atalho estreito que seguia por uma escadas e um caminho em estrada paralelo, que no final, dava acesso a um bairro. Tratava-se de um bairro sossegado. Gonçalo, tirando partido da escuridão da noite, aproximou-se cautelosamente de um pequeno jardim na propriedade de uma simples casa branca. Observou atentamente a casa e o jardim. Calmamente agachou-se sobre o jardim de flores. Pequenas flores brancas. Gonçalo sentiu-se arrependido e infeliz... Relembrou.

     - "Meu, não achas perigoso de mais estarmos aqui, em pleno dia? Acabamos de roubar um carro!"
     - "Age com naturalidade. A cerimónia deve estar a terminar."
     - "É o funeral dos teus pais?"
     - "Sim..."
     - "Os meus pêsames..."
     - "Passaram duas semanas apenas, Fábio... Como vou suportar isto para o resto da vida?"

     Gonçalo reconhece os amigos de seu pai e de sua mão. No meio, está Mateus com a sua mãe. O seu melhor amigo. De entre todas as pessoas, foca a sua atenção numa menina que coloca uma flôr branca sobre a campa da sua irmã Adriana. De seguida, as pessoas vão se afastando e despedindo-se umas das outras. A cerimónia termina. Gonçalo fecha os olhos.

     - "Vamos."

     Esticando o braço, corta uma flôr do jardim da casa e envolve-a no seu casaco preto com cuidado.

     - Lamento imenso o que fiz - disse para si próprio, afastando-se da casa.

     Com algum do dinheiro que tinha no seu saco, usou-o para passar a noite num motel nos arredores da cidade. Poucas horas conseguiu dormir. Na tarde seguinte, Gonçalo percorreu a rua do seu bairro sem chamar a atenção. Parou e espreitou pelo muro. A casa de Mateus parecia vazia. Ao fundo podia ver os destroços da sua própria casa... No mesmo instante os portões da casa abriram-se automaticamente. Desviou-se e ligeiramente afastou-se até ao fundo da rua. Ao ter ouvido o chiar de travões, Gonçalo apressou em passo de corrida até ao atalho num corte entre vedações onde correu com toda a sua força para fugir de Mateus.

     A vergonha enchia-lhe os pulmões cada vez que respirava ofegante. "Ninguém pode saber que estou aqui, por agora. Não é nada seguro.", pensou. A melhor maneira seria encontrar-se apenas com o seu amigo.

     Mais tarde, Gonçalo visitou o cemitério.

     - Olá - disse baixinho - Sinto tanto a vossa falta... - abrindo o casaco, retirou a flôr branca. Ajoelhando-se, colocou-a sobre a relva que cobria o lugar da sua irmã. Gonçalo chorou... Sentia-se péssimo, abalado com o peso de um mundo inteiro sobre as suas costas. Não fazia a mínima ideia do que haveria de fazer. Pousou as mãos sobre a relva. Ergueu a cabeça e pensou no seu melhor amigo. Era altura de lhe contar tudo. Não aguentava mais esconder o seu segredo terrível.

     A noite tinha caído. Gonçalo voltava para o motel. Ao atravessar o parque do Hospital, ouviu uma voz que lhe abriu o peito.

     - Gonçalo!

     Era a voz de Mateus. Virou-se e olhou-o nos olhos. A mãe de Mateus fixou-o com um rosto de confusão. A mesma vergonha fez os seus pés saltarem e recuarem. Gonçalo fugiu mais uma vez.

     Ao chegar ao motel, despiu o seu casaco preto e colocou o saco de dinheiro sob o colchão. Deitou-se solitário sobre a cama, experimentando dores sentimentais que ardiam tanto como as queimaduras que havia sofrido há algum tempo.

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