Rafael Braga

Filipa



Um beijinho pra Filipa :D

A vida III

Parece ser mais fácil para mim continuar. Agora que prevejo o futuro, penso mais no presente. Viverei com ela para toda a minha vida. Verei o meu filho crescer. Levá-lo-ei ao seu primeiro dia de aulas, ao seu segundo e ao seu terceiro. Levá-lo-ei todos os dias. Sentirei cada vez mais a idade a passar, a mesma idade dos meus pais quando eu fui jovem. Levá-lo-ei aos aniversários dos primos. Trarei os primos aos nossos aniversários. Ensinarei o pequeno a nadar. Ensinarei a andar de bicicleta. Adoptarei um cãozinho. Plantarei uma árvore rara no jardim. Tentarei passar mais tempo em casa e menos no trabalho. Usarei os fins-de-semana apenas para a família. Mostrar-lhe-ei, ao pequeno, os cromos da minha infância e as músicas que ouvia. Pentear-lhe-ei o cabelo. Quando for mais crescido deixar-lhe-ei conduzir o carro dentro da propriedade. Deixá-lo-ei com os primos às sextas à noite para poder sair com a alada numa aventura romântica. Pagarei a carta de condução ao sobrinho mais velho. Verei a nova sonda espacial chegar a Marte. Assistirei à maior poluíção global. As brancas do cabelo concentrar-se-ão. Pintarei o cabelo. Pintarei o cabelo do pequeno para o mundial de futebol. Torceremos juntos pela selecção. Chorarei pela passagem dos meus pais. Adoecerei por um longo tempo. Fugirei de casa por umas noites e preocuparei a amada e o meu pequeno. Voltarei a casa, pedirei muitas desculpas. Desabafarei como nunca o fiz com ninguém. Abraçá-la-ei com toda a minha força. Serei reconhecido por alguns dos meus trabalhos artísticos. Comprarei um carro para o jovem. Será responsável. Levarei a ruiva até ao deserto. Mostrar-lhe-ei o céu nocturno. Dir-lhe-ei tudo o que sinto e o quanto me faz vivo. Convidarei a namorada do jovem para jantar em nossa casa para eu cozinhar. Visitarei o lugar dos meus pais e avós. Sentirei muitas saudades de todos. Reencontrarei muitos amigos. Alguns deles nunca mais os verei. O adolescente quererá o seu próprio apartamento. Viverá sozinho com a sua namorada. Viverei sozinho com a minha amada. Venderei a casa dos meus pais. Sentirei a falta das emoções que só a adolescência me oferecia. Verei o meu filho casar. Serei avô. Reunirei a família toda nos Natais, mas não será o mesmo. A minha irmã será recompensada pelos seus anos de serviço. Verei o meu filho adulto alistar-se a militar. Preocupar-me-ei cada vez mais com a idade. Verei a ruiva envelhecer ao meu lado e lembrar ela na sua adolescência. Muitos anos depois voltarei a ver o meu filho, enorme e saudável. Terei mais um neto. Igualzinho a mim, quando fui bebé. Reformar-me-ei. Deixarei de conduzir. Deixarei de pintar o cabelo. Ele cair-me-à. Encontrarei o meu guizo amarelo e guardá-lo-ei na arca do sotão. Celebrarei o meu penúltimo aniversário. Dois meses depois celebraremos os anos da nossa união. Passearei pela minha cidade natal por mais dois Natais. Começarei a esquecer datas. A esquecer pessoas. Deixarei de poder desenhar. As minhas mãos tremerão. Apenas a ruiva me as poderá firmar. Sentar-me-ei, cansado, nos bancos de jardim da cidade e verei os jovens correr. Não dedicarei o tempo com as mesmas experiências que me faziam sentir bem. A música não me relaxará nem me fará adormecer. Não rirei nem "nostalgirei" do mesmo modo. Não me poderei mimar com chocolates nem com o cabelo. Não necessitarei do silêncio para pensar, pois nem assim o conseguirei. No entanto, e sobretudo, dependerei ainda dela para continuar. Ficarei doente, tornar-me-ei inútil. Chegarei a um ponto da vida em que voltarei ao "aviãozinho". Deixarei de distiguir o sonho da realidade. Pela última vez, depois de muitas tentativas que falharei, conseguirei, por fim, dizer as palavras: "Não me arrependo da minha vida!". Terei o meu último aniversário junto da ruiva e do meu filho. O meu cabelo irá caíndo. A côr, irá desvanecendo. Darei por mim, um dia, a fechar os olhos pela primeira vez. Cuidarão de mim, dia a pós dia. Levar-me-ão pra outro lugar, para aquele odor de medicina. Não pararão no último dia de me beijarem. Dar-me-ão banho e cobrir-me-ão com um cobertor. O médico dirá: "Lamento imenso, mas não é tão saudável como era.". Sentirei um ar fresco entrando no meu peito, que me dará logo um arrepio.

A vida II

Não é fácil para mim continuar. Agora que lembro o passado, penso mais no futuro. Trabalharei até conseguir alguns dos meus objectivos. Continuarei ligado às pessoas que adoro, mesmo que pareça desligado de tudo. Ao vigésimo-quinto ano terei a idade suficiente para poder pedir empréstimos e comprar o meu automóvel. Viverei com os meus pais enquanto nos precisarmos mutuamente. Não terei namorada nem rapariga íntima na minha vida por muito tempo talvez. Divertir-me-ei com os meus amigos durante as férias e folgas. Passearei pela minha cidade natal por muitos Natais. A minha irmã terminará os estudos e encontrará um emprego. Serei genro. Serei tio. Irei ver os meus avós passarem de vida. Irei ver alguns tios mais velhos passarem de vida. O meu cabelo tornar-se-á grisalho. As primeiras brancas surgirão. Terei dinheiro para alugar o meu próprio apartamento. Perdir-me-ão para cuidar do meu sobrinho nos tempos livres e irei ter desejos de um filho. Conhecerei muitos mais amigos e amigas. Reencontrarei a miúda de infância dos olhos azuis. Dir-lhe-ei "olá" e seguirei a minha vida sem tentar lembrar. Anos mais tarde, o meu sobrinho irá entrar na primária e leva-lo-ei ao seu primeiro dia de aulas. Irei ensiná-lo a pintar, mas não nas paredes de casa. Aconselhar-lo-ei sobre o sexo feminino e as suas vantagens e desvantagens. Decidirei por fim comprar uma casa com jardim. Os meus pais reformar-se-ão. Irei visitá-los todos os dias. Passarei na rua e irei encontrar a mais bela das ruivas. Convidá-la-ei para um jantar em casa para eu cozinhar. Leva-la-ei ao cinema a ver um filme. Assistirei a piores desastres naturais na televisão. Serei padrinho de casamentos. Viajarei até ao deserto e realizarei a minha aventura de sonho. O meu corpo sentirá a idade a pesar. Passarei mais tempo com a amiga e leva-la-ei todos os dias a casa dela. Voltarei a preocupar-me com as roupas e pintarei o cabelo. Descobrirei os meus cromos do séptimo ano, poeirentos e fechados numa arca no sotão. E dentro, mais no fundo, o meu primeiro guiso amarelo, que mais parecerá acastanhado. Lavá-lo-ei e o guardarei na sala de estar. Depois de assentar todos os problemas financeiros construirei uma piscina no jardim traseiro. Passarei tardes na piscina com essa ruiva. Olharei para ela e tocarei na sua cara linda, dobrarei o cabelo macio para trás da orelha e sem pestanejar fixarei o olhar nos seus olhos castanhos-esverdeados, claros e brilhantes como os reflexos da àgua ao sol. Não a beijarei.
Irei sentir-me um pouco farto da vida, longa e monótona. Sentir-me-ei triste e desolado ao ver os meus pais envelhecerem cada vez mais. O meu sobrinho crescerá e acabará a primária. A minha irmã tererá um segundo filho, rapaz. Serei tio e babysitter pela segunda vez. Reflectirei. Terei que tomar a decisão mais importante da minha vida. Sem pensar duas vezes devolverei o meu sobrinho mais novo ao meu genro no seu trabalho e conduzirei com toda a velocidade até casa dela. O meu telemóvel tocará e ao pressionar o botão, atenderei e despistar-me-ei num cruzamento com outro veículo. Nascerei. Sentirei um ar fresco entrando no meu peito, que me dará na altura um arrepio. O médico dirá: "Parabéns, é um homem saudável". Ao meu lado, apertarei a mão dela com toda a minha força, enquanto ela me beija. Levar-me-á pra outro lugar, longe daquele odor de medicina. Cuidará de mim, dia a pós dia. Darei por mim, um dia, a abrir os olhos pela primeira vez. A côr, tudo colorido. Entenderei nesse momento que seria ela quem eu nessecitaria para continuar. Celebrar-me-á o meu trigésimo-quarto aniversário. Pela primeira vez, após muitas tentativas que falharei, conseguirei, por fim, dizer as palavras: "Amo-te!". Contar-lhe-ei a minha vida ao pormenor como nunca fiz com ninguém. Viveremos juntos. Com ela distinguirei o sonho da realidade. Voltarei ao trabalho. Farei todas as semanas uma surpresa diferente para ela. Retratar-la-ei com a minha melhor obra. Levar-la-ei a conhecer os meus pais. Deixarei de pensar no futuro. Passar-lhe-ei a chamar de amada.
Terei o meu maior desejo concretizado, um filho rapaz. Terá o meu guizo amarelo. Pintar-me-à as paredes da casa com as cores que eu lhe escolher. Verei o meu pequeno crescer, pegar sozinho na colher e transformar o "aviãozinho" numa estação espacial com slipspace. Assistirei como que à minha segunda vida com os meus próprios olhos. Dedicarei o tempo com as mesmas experiências que me fazem sentir bem. Dependerei da música para relaxar, mas, dela ao meu lado para adormecer. Dependerei do meu filho para rir e "nostalgiar". Dependerei de chocolate, mas mais, do cabelo dela para me mimar. Dependerei do silêncio para pensar. Sobretudo, dependerei dela para continuar.

A vida

Nasci. Senti um ar fresco entrando no meu peito, que me deu logo um arrepio. O médico disse: "Parabéns, é um menino saudável". Deram-me banho e enrolaram-me num cobertor. Não pararam no primeiro dia de me beijarem. Alimentaram-me. Levaram-me pra outro lugar, longe daquele odor de medicina. Cuidaram de mim, dia a pôs dia. Dei por mim, um dia, a abrir os olhos pela primeira vez. A côr, tudo colorido. Entendi naquele momento o que fazia aquele estranho ruído. Um estúpido de um guizo amarelo! Fui crescendo. O meu cabelo foi crescendo! Fui aprendendo. Celebraram-me o meu primeiro aniversário. Mais um guizo... Pela primeira vez, depois de muitas tentativas falhadas, consegui, por fim, dizer as palavras: "Quero mais!". Fui alimentando-me sozinho de colher e transformei o "aviãozinho" num jacto de multi-propulsores. Larguei a chupeta bem cedo. Manejava habilmente as minhas mãozinhas e decidi pô-las ao trabalho. Pintei fora das linhas, pintei o meu cabelo, escrevi letras novas, risquei as paredes todas. O meu pai falava que tinha muito talento para as artes. Fui para uma escola com infantário onde conheci mais pessoas pequenas como eu. Ensinaram-me as cores, as letras e os números. Matemática, dividi 1 por 2 e dei a outra metade do chocolate à miúda mais gira do infantário. Com ela distinguia bem as cores. O meu cabelo era preto e o dela laranja.. Alguns anos depois surgiu do nevoerio uma professora zangada e enfiou-nos noutra sala. "Esbufeteio-te, mas é para o teu bem", dizia ela. Eu escrevia o meu nome de olhos fechados, soletrava e "caligrafiava" suavemente. Calculava monstruosamente. Mas tudo o que me interessava era o desejoso recreio. Ela dava-me as mãos todos os dias, enquanto eu imaginava poder navegar nos seus olhos azul ciano. Infelizmente os quatro anos completaram-se. No entanto, mais tarde, anunciaram-me mais cinco anos de escolaridade. Não entendi a necessidade de transferência, pois nunca mais a vi... A minha irmãzinha finalmente nasceu. Estava curioso, como é que ela foi lá parar. O básico iníciou e foi passando, no quinto ano conheci alguns amigos, no sexto ano vivi dezenas de novas experiências, no séptimo coleccionava cromos dos jogadores da selecção, no oitavo participei num teatro e limpei as paredes de casa que a minha irmã riscou com os meus marcadores soltos no quarto. No nono a barba decidiu crescer na minha face. Como que saída de um filme de terror, a minha cara estava toda golpeada da lâmina de babear. Caramba! Passei a cuidar muito mais da minha imagem, principalmente do meu cabelo. Sentia-me cada vez mais adulto. O carro era na altura a minha maior ansiedade também. Após o baile de finalistas separamo-nos todos novamente, como na escola anterior. As férias foram as mais longas, mais longas que todas as anteriores. A roupa começou a ser uma preocupação para mim. O cabelo começou a ser uma preocupação para mim! As saídas à noite um problemas para os meus pais. Cafés, bares, rio, praia, campismo. E as férias terminaram. O secundário estava à porta. No primeiro dia que pisei a calçada da entrada da escola, petrifiquei. Ao fundo, a dois bancos de jardim para a esquerda, estava ela, de cabelo livre na brisa, a pele eram folhas de papel firmes e macias. Os olhos eram lindos, o infinito do céu aprisionado em duas esferas divinas. Se Deus existisse e vivesse no céu, ele vivia nos olhos dela. Enquanto me tentava mexer as campainhas tocavam. Um misto de sonho e realidade. Fui ter com ela e dei-lhe a minha mão. O namorado chegou e levou-a para longe de mim... Três anos passaram. Defendia a minha irmã quase todas as semanas na entrada da escola dela por causa de rapazes. Saí do secundário com centenas de amigos e uma dúzia de grandes amigos. Eram saídas todas as noites. Os melhores amigos. Conheci amigas diferentes, e diferentes. Aderi ao Hi5, ao Facebook e a tudo o quanto havia. Mas não sabia como sair do "labirinto". Dediquei tanto tempo a ela que nem aprendi como esquecer e "largar".
Desenvolvi o talento de retratar rostos. Arranjei um emprego e passei a comprar as minhas próprias roupas e jogos. A pagar as minhas saídas sem ter que pedir dinheiro aos meus pais todos os santos dias. Pobres deles, o que passaram, pior ainda que as paredes de casa riscadas. Mas as minhas saídas abrandaram e até pararam por muito tempo. Poucas vezes via os amigos. Desgastei-me com o trabalho e mal me alimentava. Melhorei e ultrapassei aquela fase. Agora dedico o tempo com as mesmas experiências que me faziam sentir bem. Dependo da música para relaxar e adormecer. Dependo de um amigo para me rir e "nostalgiar". Dependo de um chocolate e do cabelo para me mimar. Dependo do silêncio para pensar. Sobretudo, dependo dela para continuar.
 

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