Rafael Braga

A vida

Nasci. Senti um ar fresco entrando no meu peito, que me deu logo um arrepio. O médico disse: "Parabéns, é um menino saudável". Deram-me banho e enrolaram-me num cobertor. Não pararam no primeiro dia de me beijarem. Alimentaram-me. Levaram-me pra outro lugar, longe daquele odor de medicina. Cuidaram de mim, dia a pôs dia. Dei por mim, um dia, a abrir os olhos pela primeira vez. A côr, tudo colorido. Entendi naquele momento o que fazia aquele estranho ruído. Um estúpido de um guizo amarelo! Fui crescendo. O meu cabelo foi crescendo! Fui aprendendo. Celebraram-me o meu primeiro aniversário. Mais um guizo... Pela primeira vez, depois de muitas tentativas falhadas, consegui, por fim, dizer as palavras: "Quero mais!". Fui alimentando-me sozinho de colher e transformei o "aviãozinho" num jacto de multi-propulsores. Larguei a chupeta bem cedo. Manejava habilmente as minhas mãozinhas e decidi pô-las ao trabalho. Pintei fora das linhas, pintei o meu cabelo, escrevi letras novas, risquei as paredes todas. O meu pai falava que tinha muito talento para as artes. Fui para uma escola com infantário onde conheci mais pessoas pequenas como eu. Ensinaram-me as cores, as letras e os números. Matemática, dividi 1 por 2 e dei a outra metade do chocolate à miúda mais gira do infantário. Com ela distinguia bem as cores. O meu cabelo era preto e o dela laranja.. Alguns anos depois surgiu do nevoerio uma professora zangada e enfiou-nos noutra sala. "Esbufeteio-te, mas é para o teu bem", dizia ela. Eu escrevia o meu nome de olhos fechados, soletrava e "caligrafiava" suavemente. Calculava monstruosamente. Mas tudo o que me interessava era o desejoso recreio. Ela dava-me as mãos todos os dias, enquanto eu imaginava poder navegar nos seus olhos azul ciano. Infelizmente os quatro anos completaram-se. No entanto, mais tarde, anunciaram-me mais cinco anos de escolaridade. Não entendi a necessidade de transferência, pois nunca mais a vi... A minha irmãzinha finalmente nasceu. Estava curioso, como é que ela foi lá parar. O básico iníciou e foi passando, no quinto ano conheci alguns amigos, no sexto ano vivi dezenas de novas experiências, no séptimo coleccionava cromos dos jogadores da selecção, no oitavo participei num teatro e limpei as paredes de casa que a minha irmã riscou com os meus marcadores soltos no quarto. No nono a barba decidiu crescer na minha face. Como que saída de um filme de terror, a minha cara estava toda golpeada da lâmina de babear. Caramba! Passei a cuidar muito mais da minha imagem, principalmente do meu cabelo. Sentia-me cada vez mais adulto. O carro era na altura a minha maior ansiedade também. Após o baile de finalistas separamo-nos todos novamente, como na escola anterior. As férias foram as mais longas, mais longas que todas as anteriores. A roupa começou a ser uma preocupação para mim. O cabelo começou a ser uma preocupação para mim! As saídas à noite um problemas para os meus pais. Cafés, bares, rio, praia, campismo. E as férias terminaram. O secundário estava à porta. No primeiro dia que pisei a calçada da entrada da escola, petrifiquei. Ao fundo, a dois bancos de jardim para a esquerda, estava ela, de cabelo livre na brisa, a pele eram folhas de papel firmes e macias. Os olhos eram lindos, o infinito do céu aprisionado em duas esferas divinas. Se Deus existisse e vivesse no céu, ele vivia nos olhos dela. Enquanto me tentava mexer as campainhas tocavam. Um misto de sonho e realidade. Fui ter com ela e dei-lhe a minha mão. O namorado chegou e levou-a para longe de mim... Três anos passaram. Defendia a minha irmã quase todas as semanas na entrada da escola dela por causa de rapazes. Saí do secundário com centenas de amigos e uma dúzia de grandes amigos. Eram saídas todas as noites. Os melhores amigos. Conheci amigas diferentes, e diferentes. Aderi ao Hi5, ao Facebook e a tudo o quanto havia. Mas não sabia como sair do "labirinto". Dediquei tanto tempo a ela que nem aprendi como esquecer e "largar".
Desenvolvi o talento de retratar rostos. Arranjei um emprego e passei a comprar as minhas próprias roupas e jogos. A pagar as minhas saídas sem ter que pedir dinheiro aos meus pais todos os santos dias. Pobres deles, o que passaram, pior ainda que as paredes de casa riscadas. Mas as minhas saídas abrandaram e até pararam por muito tempo. Poucas vezes via os amigos. Desgastei-me com o trabalho e mal me alimentava. Melhorei e ultrapassei aquela fase. Agora dedico o tempo com as mesmas experiências que me faziam sentir bem. Dependo da música para relaxar e adormecer. Dependo de um amigo para me rir e "nostalgiar". Dependo de um chocolate e do cabelo para me mimar. Dependo do silêncio para pensar. Sobretudo, dependo dela para continuar.

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