Rafael Braga

A vida III

Parece ser mais fácil para mim continuar. Agora que prevejo o futuro, penso mais no presente. Viverei com ela para toda a minha vida. Verei o meu filho crescer. Levá-lo-ei ao seu primeiro dia de aulas, ao seu segundo e ao seu terceiro. Levá-lo-ei todos os dias. Sentirei cada vez mais a idade a passar, a mesma idade dos meus pais quando eu fui jovem. Levá-lo-ei aos aniversários dos primos. Trarei os primos aos nossos aniversários. Ensinarei o pequeno a nadar. Ensinarei a andar de bicicleta. Adoptarei um cãozinho. Plantarei uma árvore rara no jardim. Tentarei passar mais tempo em casa e menos no trabalho. Usarei os fins-de-semana apenas para a família. Mostrar-lhe-ei, ao pequeno, os cromos da minha infância e as músicas que ouvia. Pentear-lhe-ei o cabelo. Quando for mais crescido deixar-lhe-ei conduzir o carro dentro da propriedade. Deixá-lo-ei com os primos às sextas à noite para poder sair com a alada numa aventura romântica. Pagarei a carta de condução ao sobrinho mais velho. Verei a nova sonda espacial chegar a Marte. Assistirei à maior poluíção global. As brancas do cabelo concentrar-se-ão. Pintarei o cabelo. Pintarei o cabelo do pequeno para o mundial de futebol. Torceremos juntos pela selecção. Chorarei pela passagem dos meus pais. Adoecerei por um longo tempo. Fugirei de casa por umas noites e preocuparei a amada e o meu pequeno. Voltarei a casa, pedirei muitas desculpas. Desabafarei como nunca o fiz com ninguém. Abraçá-la-ei com toda a minha força. Serei reconhecido por alguns dos meus trabalhos artísticos. Comprarei um carro para o jovem. Será responsável. Levarei a ruiva até ao deserto. Mostrar-lhe-ei o céu nocturno. Dir-lhe-ei tudo o que sinto e o quanto me faz vivo. Convidarei a namorada do jovem para jantar em nossa casa para eu cozinhar. Visitarei o lugar dos meus pais e avós. Sentirei muitas saudades de todos. Reencontrarei muitos amigos. Alguns deles nunca mais os verei. O adolescente quererá o seu próprio apartamento. Viverá sozinho com a sua namorada. Viverei sozinho com a minha amada. Venderei a casa dos meus pais. Sentirei a falta das emoções que só a adolescência me oferecia. Verei o meu filho casar. Serei avô. Reunirei a família toda nos Natais, mas não será o mesmo. A minha irmã será recompensada pelos seus anos de serviço. Verei o meu filho adulto alistar-se a militar. Preocupar-me-ei cada vez mais com a idade. Verei a ruiva envelhecer ao meu lado e lembrar ela na sua adolescência. Muitos anos depois voltarei a ver o meu filho, enorme e saudável. Terei mais um neto. Igualzinho a mim, quando fui bebé. Reformar-me-ei. Deixarei de conduzir. Deixarei de pintar o cabelo. Ele cair-me-à. Encontrarei o meu guizo amarelo e guardá-lo-ei na arca do sotão. Celebrarei o meu penúltimo aniversário. Dois meses depois celebraremos os anos da nossa união. Passearei pela minha cidade natal por mais dois Natais. Começarei a esquecer datas. A esquecer pessoas. Deixarei de poder desenhar. As minhas mãos tremerão. Apenas a ruiva me as poderá firmar. Sentar-me-ei, cansado, nos bancos de jardim da cidade e verei os jovens correr. Não dedicarei o tempo com as mesmas experiências que me faziam sentir bem. A música não me relaxará nem me fará adormecer. Não rirei nem "nostalgirei" do mesmo modo. Não me poderei mimar com chocolates nem com o cabelo. Não necessitarei do silêncio para pensar, pois nem assim o conseguirei. No entanto, e sobretudo, dependerei ainda dela para continuar. Ficarei doente, tornar-me-ei inútil. Chegarei a um ponto da vida em que voltarei ao "aviãozinho". Deixarei de distiguir o sonho da realidade. Pela última vez, depois de muitas tentativas que falharei, conseguirei, por fim, dizer as palavras: "Não me arrependo da minha vida!". Terei o meu último aniversário junto da ruiva e do meu filho. O meu cabelo irá caíndo. A côr, irá desvanecendo. Darei por mim, um dia, a fechar os olhos pela primeira vez. Cuidarão de mim, dia a pós dia. Levar-me-ão pra outro lugar, para aquele odor de medicina. Não pararão no último dia de me beijarem. Dar-me-ão banho e cobrir-me-ão com um cobertor. O médico dirá: "Lamento imenso, mas não é tão saudável como era.". Sentirei um ar fresco entrando no meu peito, que me dará logo um arrepio.

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