Rafael Braga

O efeito do defeito - Maria

Parte 8
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     À hora programada o despertador ligou o rádio. Era manhã.

     "... electricas foram resolvidas esta madrugada, enquanto isso, as autoridades continuam as buscas pelo jovem Gaspar Fernandes, de quinze anos, que desaparecera esta noite durante o inexplicável apagão. Mais informações a seguir aos anúncios."

     Maria esticou um braço e desligou o despertador. Permaneceu deitada, acordada, porém de olhos fechados. O seu pensamento estava vazio. A luz da manhã raiava pela janela do seu quarto. Imaginou certa noite. Candeeiros iluminam a avenida de cima a baixo. Ao fundo, do avesso, um carro balança capotado. Maria corre mas a sensação é a mesma: a de estar presa ao asfalto, sem se poder mover para a frente. Num piscar de olhos, Carolina está sob a frente do carro. O carro range em sons de metais e vidros. Maria levanta o carro como se fosse de brincar. Nada a emociona...

     Um ligeiro sufoco fez Maria acordar novamente. Havia adormecido. Passaram cinco minutos apenas. Maria levantou-se e vestiu-se. Desceu até à cozinha.

     - Bom dia - cumprimentou Bernardo, indiferente.
     - Bom dia.

     Bernardo havia saído a noite passada depois de um telefonema, segundo a mãe. Maria sentou-se à mesa, observando os movimentos de Bernardo. Tinha vestido a mesma roupa do dia anterior, o fato cinzento, que por norma, era a sua cor de roupa geral. Caracterizava-se como um homem estranho e sem vida própria.

     - Bernardo...?
     - Sim? - deu-lhe atenção imediata.
     - Precisava de um favor seu.
     - Força.

     Maria relaxou.

     - O Bernardo vai sair agora?
     - Depende.
     - Bem, é que não posso levar a Carolina comigo, por isso...
     - Tudo bem - afirmou num tom como se tivessem mudado o assunto - Ela está a dormir.

     Maria concordou. Tomou o seu leite enquanto olhava para ele, calmo e sem preocupações. Maria não conseguia perceber o que a sua mãe via naquele homem. Era tão reservado e misterioso.

     - A tua mãe contou-me sobre uma mulher que veio cá a casa procurar-te... - Bernardo quebrou o olhar de Maria - e pediu-me que vos vigia-se.

     Maria acenou com a cabeça.

     - Posso saber onde vais?
     - Ao Hospital - Maria respondeu indiferente.

     Bernardo levantou-se e arrumou o seu prato e copo. Lavou as mãos e dirigiu-se para a sala.

     - A tua mãe chega às 14 em ponto. Não te atrases.

     Maria ficara um pouco indignada. Havia, por tanto, um babysitter em casa. Levantou-se e arrumou as suas coisas. Voltou ao quarto e preparou-se para sair o mais rápido possível. Carolina continuava a dormir. E como ela parecia um anjo a dormir. Desceu novamente.

     - Volto já - informou a Bernardo.

     Percorreu a rua até ao final e sentou-se na paragem de autocarros. Não havia esperado muito, um autocarro com o seu destino aproximava-se. "Espero que ela tenha respostas para mim", pensou, "Mas que perguntas terei eu?", reflectiu, "Ela é médica, acho que poderei confiar nela.", "Em quem mais poderei confiar também?", Maria baixou o olhar. O autocarro parou saindo metade dos passageiros. "E o Mateus? O que terá ele? Poderei perguntar-lhe sobre ele?...", Maria perdeu-se nos pensamentos, distraiu-se.

     À entrada do Hospital, Maria começou a sentir o nervosismo aumentar.

     - Olá - chamou a recepcionista.
     - Olá, eu gostaria de falar com uma médica que trabalha neste Hospital.
     - Creio que não seja possível, isso. Estamos na hora de trabalho.
     - Preciso muito de falar com ela - Maria pausou - Foi ela quem me recomendou vir aqui.
     - Sendo assim - interrogou-se - Quem é a médica?
     - Doutora Célia...
     - Sim?

     Maria voltou-se.

     - Maria? Prazer em rever-te - sorriu Célia.
     - Preciso de conversar consigo.

     Célia mostrava-se atarefada entre dois pacientes à saída. Olhou o relógio e fez um sinal para a seguir.

     - Deve ser importante, para teres mentido à recepcionista.
     - Sim... - respondeu envergonhada, enquanto seguia a doutora pelo corredor até ao elevador.

     Ao entrarem no escritório, Célia informou uma enfermeira de que faria uma pausa. Entrou de seguida e assinalou uma cadeira para Maria.

     - Senta-te. Como está a tua irmã?
     - Saudável, agora.
     - Não fazíamos ideia anteontem ou nem teríamos ido a tua casa. O que se passa?
     - Bem... É um pouco sobre isso que lhe quero falar.

     Maria observou atentamente todo o escritório em seu redor enquanto organizava as suas ideias.

     - À minha mãe não lhe agradou muito a ideia de terem ido lá a nossa casa.
     - Oh querida. A culpa foi toda minha. Desculpa-me. Devia ter percebido quando não fui bem-vinda.
     - Peço desculpa, pelo meu pai também...
     - Se te reconfortar, eu terei todo o gosto em falar com a tua mãe e explicar-lhe a situação.
     - Não acho que seja necessário - Maria acenou com a cabeça - Ela é um pouco exaltada. O melhor será esquecermos isto.
     - Tudo bem - Célia sorriu - Mas não foi por isso que cá viste, pois não?

     Maria baixou os olhos. Respirou fundo e suspirou calmamente.

     - Ficaste confusa com o que aconteceu com o meu filho, Mateus? Desculpa-me.
     - Sim - Maria elevou os olhos - Um pouco - e corou.
     - Eu poderia contar-te o que se passa com o meu filho, mas tornaria ainda tudo mais confuso para ti.

     Maria hesitou ao falar. Porém, Célia continuou.

     - O Mateus tem um problema de memória, apenas. Foi instinto meu levá-lo até ti para poder ajudá-lo. Não queria ter arranjado problemas para ti.
     - Nenhum. Mas o que eu tenho haver com isso? - perguntou gentilmente.
     - Não sabemos com toda a certeza. E eu sei que para ti é estranho isso. Para mim também era ao início.

     O telefone tocou.

     - Dás-me um minuto? - pediu Célia - Sim, Mateus? ... O quê? Isso porque ela está aqui comigo... Como?... Calma, filho, vem ter comigo e contas-me. Tem cuidado. Beijo.

     O telefone desligou. Célia reflectiu.

     - Era o meu filho. Ele esteve em tua casa, mas tu não estavas.

     Maria observou a forma como a doutora estava em pânico por dentro. Interrogou-se. "Porque iria ele procurar-me? O que se passa?"

     - Acho que devo ir embora - levantou-se Maria.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 7
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- Noite 10 de Janeiro -

     - Deixa-o aqui - pediu Raphael, enquanto Gonçalo abrandava o carro - Saltarei este muro e regressarei em dez minutos no máximo. Será esse o tempo total. Atentos, rapazes?
     - Sim.
     - Sim - respondeu Gonçalo ligeiramente atrasado.

     Raphael tocou em cada ombro dos rapazes com ambas as mãos e saiu do carro, pousou a mochila aos seus pés e inclinou-se sobre a janela aberta da porta. Calado, levantou o indicador e abanou o pulso.

     - Aprovo em como ele quererá trazer alguns itens pessoais, por isso estejam atentos ao meu assobio.
     - Como vai convencer um rapaz de quinze anos a fugir de um orfanato, consigo? - perguntou Gonçalo.
     - Sou assim tão feio e intimidante?
     - Quero dizer, o que lhe dirá que o fará vir? Ele nem o conhece.
     - Por não me conhecer, talvez eu acredite que ele fará o mais certo para si mesmo - respondeu Raphael levantando-se - A rua ficará escura, estejam atentos e quietos.

     Raphael agarrou a mochila e arremessou-a para lá do muro alto. Em dois passos correu em direcção da parede, saltou e agarrou-se com as mãos, flexionou os braços no topo e avançou para o outro lado num instante.

     - Fábio, o que sabes sobre isto? - perguntou Gonçalo depois de ter assistido à manobra.
     - Tanto como tu, meu.
     - Que terá este rapaz, "especial", tanto interesse para o Raphael?
     - Bastante - sublinhou em voz alta. Estava à vista.
     - O que sabes tu? Conta-me!
     - Não sei o suficiente. Apenas sei que ele é como tu,... - disse Fábio e citando a palavra de Gonçalo - ..."especial".
     - Ok. Mas porquê?
     - Porquê o quê?
     - Porquê aqui? Agora?
     - Não sei - respondeu, em tom de ofendido.

     Fábio encostou-se no banco e ligou o rádio num volume quase em silêncio. Ouviram o som dos grilos e da música durante dois minutos. Então, voltou a falar.

     - Não é a primeira vez que ele faz isto.
     - Como assim?

     A rua apagou-se por secções e por completo. Casas e edifícios em seu redor ficaram sem electricidade. A única e fraca claridade provinha do céu, da lua. Tudo o resto era escuridão.

     - Foi Raphael quem me sacou deste orfanato há uns meses atrás. Na noite anterior, antes de nos termos conhecido. - continuou Fábio.
     - Na noite anterior em que eu fugi do Hospital? Nunca me contaste...
     - Sim... Nem tinha razão para contar, não percebi isso na altura.

     Gonçalo pensou por alguns segundos.

     - Espera lá - reflectiu - O que fazias então na minha casa, ou no que restava dela, o que fazias lá? Foi ele?
     - Não. Não - respondeu Fábio - Não teria feito isso.
     - Mas o que te dá tanta certeza que não o fez por minha causa?
     - Porque ele não te conhecia. Fui eu quem te apresentei a ele, lembras?
     - Sim... Ok - Gonçalo recordou - Lembro da cara de espanto dele, foi arrepiante ao início.
     - Pois. Mas ele já tinha conhecido algumas pessoas com "dons" antes.
     - Ah?
     - É o que ouviste, meu. Ele já tinha conhecido algumas antes, contou-me hoje.
     - Algo não bate certo aqui.
     - Porque dizes isso? - questionou Fábio com um ar surpreso.

     Os dois olharam para o relógio. Acenaram com a cabeça apontando para fora e saíram do carro. Encostaram-se, sempre atentos e cuidadosos, ao muro e esperaram um pouco mais.

     Fábio tremeu.

     - Acho que me arrepiei na espinha...
     - Ele nunca nos contou nada sobre isto - afirmou Gonçalo.
     - Nós nunca perguntamos.
     - Ok, mas não sabíamos. tudo. E agora este rapaz? Como irá este rapaz ajudar-me a entender o que aconteceu no dia do incêndio da minha casa? - perguntou.
     - Que outro tipo de dom terá ele? Aliás? Que outro "dom" conhecemos?
     - Além do meu, mais nenhum - disse Gonçalo, encostando-se ao muro.

     Um assobio quebrou a conversa. Era o sinal de Raphael.

     - Se o Rapahel me tirou deste orfanato e agora...
     - ...está a tirar este rapaz "especial"? - concluiu Gonçalo ao agarrar uma mochila vinda do outro lado do muro.

     Os dois olharam-se interrogados. O rosto de Fábio petrificou. Agarrou também outra mochila.

     - Não nos vamos precipitar. Falaremos com o Raphael depois - terminou Gonçalo.

     Do topo do muro surgiu o jovem rapaz. De seguida, Raphael, que o agarrou e desceu com ele ao colo num salto olímpico. Não tinham tempo para apresentações. Entraram no carro e Gonçalo arrancou na noite.

     - Gonçalo, leva-nos para o Porto - ordenou-lhe Raphael.
     - Para o Porto? - perguntou surpreso o rapaz.

     Gonçalo não questionou. Acelerou a fundo, conduzindo como um maluco. Fábio levantou apenas uma sobrancelha.

     - Para o Porto, de novo, acabei de chegar!
     - Lá se foram as tuas "férias" - sorriu Gonçalo.
     - Não vejo nada de diferente no rapaz - murmurou Fábio, que seguia do seu lado.
     - Porquê? Em mim vês?

     Fábio revirou os olhos. Estupidez de suposição. Continuou a ouvir a conversa entre Raphael e o rapaz que seguiam nos bancos traseiros.

     - Raphael? É o seu nome? - perguntou o rapaz.
     - Sim.
     - O senhor também vê espíritos como eu?

     Gonçalo e Fábio olharam-se pasmados, "Espíritos?", pensaram em sintonia. A conversa desenrolava-se cada vez mais. Gonçalo abrandou a condução para a ouvir com melhor atenção.

     - Não pode ser - negou, descrente.

Vai pela sombra, que nem a noite mereces...

Só me pergunto porquê?

O efeito do defeito - Gaspar

Parte 7
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- Noite 10 de Janeiro -

     Todo o Orfanato estava envolto de escuridão. Todos pareciam dormir descansados, ninguém havia dado um alarme. Gaspar e Samuel permaneciam no quarto. Samuel dormia encostado na cama. Gaspar entrou em pânico. Aproximou-se num salto para junto da janela, dali olhou até onde os seus olhos lhe permitiam ver. Não era apenas a rua que havia ficado sem electricidade, mas sim dezenas de quarteirões no centro. No entanto, o seu quarto ainda estava iluminado por uma luz natural. Era a mesma nuvem branca, agora iluminada, que ainda pairava sobre Sam.

     - Que raio! - praguejou Gaspar, "Que será isto?"

     Outros pensamentos habitavam e manifestaram-se na mente de Gaspar. "Será ele?", "Será que aquele homem estava a falar tão a sério?", Gaspar matutou numa hipótese. Uma antiga ideia, a de fugir do Orfanato e ter uma vida mais livre, acompanhou-o por muitos meses, mas sem nunca ter tido uma oportunidade real. Gaspar interrogou-se, "Fugirei com ele? Será de confiança? Que me acontecerá depois?"

     Ao fundo da rua ouviam-se cães ladrarem e uivarem. Carros buzinando. E o tempo não parava. Gaspar nem se havia apercebido que a luz que Samuel emitia desfalecera lentamente, desaparecendo na escuridão. A escolha estava nas suas mãos. "Vou ou fico?"

     - "Gaspar?" - falou uma voz trémula e aguda.

     Gaspar reconheceu-a perfeitamente, o que não fazia sentido nenhum. Era a mesma voz que ouvira de manhã, da rapariga desconhecida que havia morrido na cantina. Olhou para a janela e ali estava, em pé, com a mesma roupa queimada e o corpo desfigurado: uma pequena menina translúcida. Gaspar engoliu em seco e tentou relaxar, controlando a respiração.

     - "Gaspar..." - disse a pequena movendo o braço gentilmente, chamando-o.
     - Quem és tu? E... como vieste aqui ter se morreste na cantina?

     Gaspar tremia. O aquecimento estava desligado por alguns minutos mas o frio depressa se fez sentir. Esperava nervoso pela resposta da menina. Reflectiu.

     - Como sabes o meu nome? - perguntou numa voz pacífica.
     - "Não importa quem eu sou, agora." - respondeu, sorrindo - "Foi o Raphael que me pediu para te chamar, agora percebo."

     Gaspar sentiu confusão das palavras da menina. Contudo, a dúvida fora esclarecida, Raphael estava por perto para o buscar. A primeira impressão que Gaspar entendera fora que aquele homem também deveria conseguir falar com os espíritos. Isso bastou para convencê-lo.

     A janela do quarto de Gaspar e de Samuel situava-se no primeiro andar. "Por onde irei fugir?", perguntou-se.

     - Gaspar! - sussurrou uma voz vinda do exterior.

     Gaspar aproximou-se cautelosamente até perto da janela, onde a menina se mantia curiosa e não tirava a vista de cima dele. Num gesto automático, Gaspar tentou tocar na menina, algo parecido, que havia feito há algum tempo atrás com um outro espírito, mas sem êxito qualquer. Espreitou para baixo. Encostada à parede das traseiras, uma escada de madeira, propriedade do Orfanato, elevava-se até à janela.

     - Gaspar! A decisão é tua. Agora sabes do que sou capaz, também.

     Gaspar hesitou por breves segundos. Repensou em tudo, tentou repensar em tudo. Nada mais fazia mais sentido, senão fugir com aquele desconhecido. Olhou de canto para a menina, mais uma vez, ela sorriu-lhe. Virou-se para o interior e agarrou duas mochilas. Com cuidado e sem fazer muitos ruídos, pegou em algumas roupas e fechou a mala. Pegou no seu computador portátil e na bateria e colocou-o na segunda mochila. Junto à janela, elevou as mochilas. No terreno, Raphael acenou em afirmação. Atirou as mochilas, uma de cada vez. Gaspar olhou pela última vez para o interior do seu quarto. Samuel dormia sem preocupações. Queria despedir-se do amigo como deveria de ser, mas teria que ficar para mais tarde.

     Respirou fundo e voltou-se para a janela. A menina, que num segundo estava no interior do quarto, estava no seguinte lá em baixo, ao lado de Raphael. Gaspar equilibrou-se no peitoral da janela e agarrou-se às escadas de madeira. Em segundos desceu.

     - E agora? - perguntou Gaspar.

     A menina desaparecera. Raphael agarrou as escadas e atirou-as para o outro lado do jardim sem qualquer esforço. Os dois correram até ao muro, junto de uma grande torre de distribuição de electricidade. Pegaram numa mochila pousada e guardaram uma tesoura e uma lanterna ainda ligada. Raphael colocou-a ao ombro junto da outra mochila de Gaspar e fechou a caixa de distribuição.

     Raphael emitiu um assobio breve, atirando de seguida uma mochila e depois outra. Esticou a mão para Gaspar em busca da última mochila.

     - Esta contem o meu portátil, eu levo-a comigo - disse Gaspar, agarrado à mochila.
     - Tudo bem - sorriu Raphael.

     O muro elevava-se cerca de dois metros e meio. Raphael fez sinal com as mãos e uniu-as ao nível dos joelhos de Gaspar, que encaixou o seupé esquerdo e trepou até ao cimo da parede. Sem entender como, Raphael velozmente subiu o muro e agarrou-o, saltando para o outro lado do muro com ele ao colo. Gaspar abriu os olhos e ao seu lado haviam mais dois rapazes que seguravam as mochilas.

     Todos entraram no carro preto. A noite continuava calma, ao contrário da pulsação de Gaspar que se assemelhava a um sismógrafo durante um terramoto na escala máxima. O rapaz mais velho conduzia, enquanto que o mais novo, um tanto familiar para Gaspar, seguia no lugar do passageiro. Raphael seguia atrás com ele.

     - Gonçalo, leva-nos para o Porto - ordenou o homem.
     - Para o Porto? - abismou-se Gaspar.

     Dentro do carro, ouviam-se murmúrios entre os rapazes.

     - Passaremos lá esta noite, em minha casa. É mais seguro. Não te preocupes - apaziguou Raphael, olhando-o nos olhos com um sorriso maduro.

     Gaspar não sabia o que estava a sentir no momento, um misto de nervosismo e desconforto com a situação, preocupação para com o amigos que deixara para trás, algo que o poderia facilmente leva-lo a arrepender-se. Não queria pensar nisso. Haviam questões a serem colocadas. Colocou o cinto, devido à condução agressiva, e reencostou-se com segurança no banco.

     - Raphael? É o seu nome? - perguntou, não envergonhado, receoso.
     - Sim.
     - O senhor também vê espíritos como eu?

     Os rapazes tornaram-se automaticamente mudos. Um deles ainda olhou para trás. Raphael sorriu com os lábios e acenou em negação.

     - Mas consegue falar com eles - afirmou Gaspar - Aquela menina falou-me sobre si.
     - É verdade. A tua capacidade é deveras mais desenvolvida que a minha. Eu apenas consigo comunicar-me com ele, mas tu, tu consegues mais que isso.
     - Consigo vê-los, sim - concluiu Gaspar.
     - Conheces a menina?
     - Não. Mas já havia visto antes, esta manhã na minha escola, depois do incêndio.

     Raphael posicionou-se no banco para conversar abertamente com Gaspar.

     - Diz-me, o que não te fez sentido?
     - Sobre a menina? O facto de ela não se agarrar apenas ao local onde morreu, mas conseguir mover-se para outro lugar, como no Orfanato, há minutos.
     - Como sabes isso?
     - Porque foi assim que eu percebi com os meus pais...

     Gaspar desviou o olhar por momentos. O interior do carro permanecia em silêncio, apenas se ouvia a conversa dos dois. Raphael levantou uma questão.

     - E se alguém morrer e não se agarrar apenas ao lugar?
     - Agarrar-se a uma pessoa viva? A si? - Gaspar ponderou - É a primeira vez que vejo acontecer.
     - Claramente és um rapaz brilhante. Teremos muito para falar.

     Gaspar sentiu uma curiosidade imensa a desvendar-se. Nada mais parecia importar senão aquela conversa.

O efeito do defeito - Maria

Parte 7
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- Noite 10 de Janeiro -

     Ambas regressaram a casa depois do passeio de tarde pelo parque. Maria deitou Carolina na cama, que adormecera com o cansaço. Certificou-se que a irmã estava confortável e agasalhada. Trocou de roupa, vestindo o pijama de noite e levou a roupa usada para a cozinha. Lá, a mãe preparava o pequeno-almoço para o dia seguinte.

     - Ainda estás acordada, filha - afirmou a mãe.
     - Sim. Não tenho sono, ainda.
     - Queres uma chávena de chá que estou a preparar para mim?
     - Sim - respondeu Maria, sentando-se ao balcão da cozinha.

     A água fervia e a mãe colocou a saqueta das ervas aromáticas. De seguida, serviu.

     - Cuidado, está quente. A Carolina adormeceu?
     - Sim, mãe.

     As duas tomaram um gole do chá. Maria agarrou a chávena, concentrando-se no que iria perguntar.

     - Onde está o Bernardo? - perguntou, desviada do assunto ainda.
     - Ele saiu, querida. Teve uns assuntos dele para tratar.

     Maria questionou-se. Mal sabia que tipo de emprego ele teria ao certo.

     - A estas horas? – perguntou, Maria.
     - Sim, ligaram-lhe. Ele disse que era urgente...

     Maria não se quis importar mais. Havia uma outra questão, mais importante.

     - Mãe, porque o pai veio cá a casa, ontem?

     A mãe desviou o olhar da filha, levantou-se do banco e arrumou a sua chávena vazia na banca. Maria bebeu um pouco mais e levantou-se também.

     - Ele queria saber como eu estava e como vocês estavam também.
     - Ele tinha bebido... - afirmou Maria.
     - Sim, eu sei - disse a mãe. Abriu a torneira e começou a lavar as chávenas.

     Maria aproximou-se e agarrou um pano seco.

     - Ele tinha estado antes no Hospital para ver a Carolina mas expulsaram-no naquelas condições. Mais tarde passou cá para entregar a chave dele da casa. - concluiu a mãe.
     - O que terá acontecido para ele mudar tanto? - perguntou Maria.
     - Principalmente o vício...
     - Ele... - suspirou Maria - Ele ficou assim desde que a Carolina teve o acidente...
     - Não havia razão nenhuma que desculpasse o comportamento dele agora. Todos nós passamos pelo mesmo...

     Maria assentiu a desilusão nas palavras da mãe. Terminou de secar a sua chávena e arrumou-a no seu lugar. Continuou a olhar para a sua mãe.

     - Alguma coisa mais teve que acontecer... - continuou a mãe.
     - Vocês discutiam sobre isso o tempo todo - afirmou.
     - Acho que já não havia outra forma para resolver os nossos problemas. Foi ele quem decidiu que deveria ir embora. Por um lado, foi o melhor...

     Maria percebia o quão falta ele ainda fazia em casa, depois de tantos anos juntos. Mas pensava na mesma hipótese que a mãe. A separação foi dura mas trouxe equilíbrio até os dias de hoje.

     - A Carolina sente a falta dele, mãe.
     - Eu sei. Ela não passou por nada disto enquanto teve no Hospital. Será justo dizer que é mais fácil para ela?

     Maria encolheu os ombros sem pensar.

     - Acho que não. É ela quem vai sentir mais falta dele agora. O Bernardo ainda é um estranho para ela. E ela só viu o pai duas vezes, no Hospital, nem teve tempo para entender o que se passava.
     - Mas ela é muito forte e nós estaremos aqui para ajuda-la em tudo - disse a mãe.

     Maria sorriu e acenou com a cabeça em afirmação. A mãe consentiu. Olhou em sua volta, a cozinha estava impecável e pronta para o dia seguinte. Depois perguntou.

     - Quem era a senhora que te levou ao Hospital?

     Maria pensou nas possibilidades em a mãe saber. Talvez a Carolina lhe havia dito.

     - O teu pai disse-me que alguém bateu à porta enquanto ele esteve cá. Uma senhora, médica, acho eu, que queria falar convosco. Que depois te levou. Quem era?

     Maria relembrou a conversa com o rapaz, chamado Mateus, e a sua mãe. Não fora uma conversa vulgar, quase nada fazia sentido e ele era tão estranho e misterioso. Eles apenas tinham vindo ao seu encontro em ajuda para ele mesmo. Ajuda que Maria não entendera como lhe oferecera.

     - Uma senhora que vinha pedir ajuda para o seu filho.
     - Ajuda?
     - Sim - Maria encolheu os ombros em insignificância - Acho que o filho tinha problemas de memória e que ele se lembrava de mim.
     - Como assim, lembrava de ti? - a mãe elevou a voz de preocupação e desconforto simultâneo.
     - Não sei, mãe.
     - E como te encontraram aqui? Como sabiam? - a mãe continuou, questionada.
     - Não sei.
     - E mesmo assim foste com eles?

     Maria estava a perceber o ponto em que a mãe queria chegar.

     - Calma, mãe. Eles foram simpáticos comigo, nada mais.
     - Nada mais? Vieram assim, do nada, à nossa casa? Não faz sentido, porque haveriam de vir ter contigo assim?

     Maria entendia a preocupação da mãe. Mas explicar para a mãe os detalhes todos que nem ela própria conseguia entender, mas que lhe faziam um pouco de sentido, ainda iriam prolongar mais as preocupações. "Talvez devesse ter mentido.", pensou para si.

     - Se houver uma próxima vez que eles venham cá novamente, eu mesma falarei com eles. De acordo?
     - Sim, mãe - respondeu Maria, obediente à situação.
     - Tenho que me deitar. Está a ficar tarde.

     Desejando boa noite, a mãe subiu para o quarto. Maria ainda ficou na cozinha.

     Reflectindo sobre o assunto, questionou-se com as mesmas perguntas da mãe. "Como souberam eles chegar até aqui? Como sabiam a minha morada?", pensou. Verdade seria, "Vieram até aqui à minha procura apenas porque precisavam da minha ajuda? Só prova que seria mesmo importante, a intenção." Maria continuou a pensar sobre o assunto. "Porque não me perguntei sobre isto antes? Porque não lhes perguntei? Que importância terei eu para eles?"

     Toda a casa permanecia em silêncio. Num segundo, toda a electricidade falhou, ficando tudo às escuras também.

O efeito do defeito - Mateus

Parte 7
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- Tarde 10 de Janeiro -

     - Apesar de tudo, o teu pai queria que tu podesses controlar melhor as tuas capacidades. Mas cada vez se estavam a tornar um problema para ti - contou Célia.

     Mateus segurou a mão da sua mãe também.

     - Quando eras mais novo, eu e ele tentamos de tudo para que podesses conseguir uma vida mais calma.

     Mateus relembrou algumas das suas idades anteriores, a sua infância e o rumo que seguira conforme as suas capacidades se manifestavam e os problemas que lhe traziam.

     Enquanto falava, Célia apercebeu-se que alguém se aproximava deles. Voltou-se naturalmente e, uma rapariga, com um rosto curioso mas traçado de desânimo, permanecia em direcção deles, como se estivesse à escuta. No mesmo instante, a rapariga voltou-se de surpresa e seguiu na direcção contrária, partindo. Mateus nem deu atenção à situação, envolvendo-se com o seu raciocínio supersónico.

     - Porque bebia ele? - perguntou Mateus, indignado com a justificação que o pai lhe havia dado a certa altura.

     Célia suspirou.

     - Quando conheci o teu pai, já ele tinha esse vício. Mas sempre foi correcto comigo. A dada altura ele parou a bebida por completo, sem explicação alguma. Ele nunca me havia contado o porquê até então. Nesse mesmo ano, dois anos depois de nos termos conhecido, ele contou-me por fim. Eu não queria acreditar mas ele dizia que me iria provar que tinha um "dom". Eu estava a estudar medicina e ele tinha um amigo que nos ajudou. Ele possuía uma máquina, que agora está na nossa sala de experiências, no meu laboratório. Essa mesma máquina mostrou padrões fora do normal no funcionamento do cérebro do teu pai... enquanto sonhava, após de escrever algo que o perturbava.

     Mateus assentiu a forma como a sua mãe recordava o seu pai.

     - E beber - continuou - diluía as suas capacidades durante o dia para poder dormir em paz à noite. E, de facto, era o que acontecia. Mas o alcóol corroeu-o por dentro... até não ter aguentado mais...
     - Mãe...

     Os dois olharam-se.

     - Achas que o pai foi o primeiro? - perguntou Mateus em tom de assunto mudado.
     - Como assim?
     - O que sabias do avô?
     - Nada. Faleceu antes mesmo de conhecer o teu pai. Porque perguntas?

     Mateus receou, mas sem grandes preocupações. Apenas precauções.

     - Se um dia eu tiver um filho, achas que poderá...
     - Ser hererditário?
     - Sim...
     - Muito possivelmente. Ainda estou muito atrasada nos meus estudos e sabes como estou limitada para o nosso bem. Mais ninguém, em todo o mundo, tem feito estudos relacionados, o que quer dizer que talvez possas ser um dos poucos, quem sabe se não o único agora, com estas capacidades em desenvolvimento.

     Mateus sorriu.

     - És difícil de acompanhar quando falas dessa maneira - disse Mateus.
     - Pensei que serias por esta altura capaz de tudo.

     Ambos sorriram. E de seguida fez-se silêncio.

     - Obrigado, mãe.

     Célia olhava Mateus, enquanto ele parecia perdido nos seus pensamentos. A sua expressão alterou-se por completo.

     - Que se passa?
     - Achas que pode haver mais alguém como eu?

     Célia não respondeu. Apenas podia pressupor.

     - Eles podem andar escondidos, como eu, e nunca saberemos...
     - Verdade, mas então nunca o saberás - Célia pensou para si própria - e não deves ter tanta esperança nisso, como te acabei de dizer.
     - Apenas tenho um pressentimento... - disse baixinho.

     Mateus alterou a sua disposição.

     - Lembrei de uma ligação muito estranha. Como pude deixar passar! - elevou a voz por fim.

     A sua mãe esforçou-se por acompanhar. Mateus gelou por momentos.

     - A flôr! - gritou com as mãos apontadas.
     - Qual flôr?
     - Lembras? Viste a flôr branca no Hospital, no quaro, quando fomos buscar aquela menina com a irmã, a Maria?
     - Flôr, não... - respondeu, tentando recordar mais.

     Mateus fez a ligação.

     - Eu vi a flôr branca. A mesma flôr que a menina deixou no... funeral há meses. A mesma flôr que ela tem à porta de casa, num jardim só delas.
     - Que queres mostrar com isso?
     - Não sei! - respondeu, desnorteando-se Mateus com as ideias, que raramente acontecia - A flôr quer dizer alguma coisa mas não sei o que é. Vi-a ainda hoje, no cemitério...
     - Foste ao cemitério? Mateus... - perguntou a mãe, preocupada.

     Os pensamentos de Mateus aceleravam. A música que ouvia todo o tempo interrompia-se, tal e qual como a interferência de um rádio. Começou a doer-lhe a cabeça. Para seu bem, acalmou-se, pensando com a respiração.

     - Sinto que algo maior me une a estas pessoas que não conheço, a esta Maria e à sua irmã...

Outra luz amanhece

Outra luz amanhece. Pintada entre quadros unidos e nascimentos astrais.
Ergue-se sadia totalmente amarelada, estrelar, acesa.
Manifesta-se infinita num humilde aventureiro.
Fantasia-lhe o remoto mar amplo. Deveras expandido, ternuramente enfeitiçado.
Maravilhoso, odor salgado, temperado, ruge às rochas que, ulceradas, estas afundam inevitavelmente navios de amadores. Lamento utópico trazido ocidentalmente. Patronal orgulho recusado.
Eleva sua temida espada. Brilhante lâminada, ouro gelado.

Em satíricos tempos originara ultimatos, atrocidades, feridas abertas zanzadas em lamúrios oportunos.
Sua obra bárbara revoltara e transformara um deus obcecadamente. Premíscuo, ardente, rancoroso, antropoteísta. Transformara-o insaciável. Perigoso, atraz, raivoso, aumentado. Tornara-o enorme.
Manuseando o seu toque rasgou a raiva. Quebraram-se-lhe unhas e saudades eternas.
Carismado, o nato soldado içara gloriosamente o suberbo úmero, prontificado em reconciliação, armado refece. Ignificara sobreventosamente tamanha orgia. Tempestade ultrajante. Tempos amanharados, maliciosos, bulcões elevaram-se monstruosamente.

Deuses enlouquecidos. Uma manhã adormecida.
Moldariam as nações, enriqueceriam ignorantes, rafeiros, anarquistas.
Observaram unânimes, divinos entristecidos.
Objectaram unidos tanta raiva anormal.
A receosidade roera a natureza, jazia a redenção em igualdade.
Fermentariam outra renascente maravilhosa aliança?
Dúvidosos esperançaram, temerosos esperaram.
A bondade regenerou-se, a caravela atracada rangeu.
Navegante, escondeu sua temida espada. Bainhou lentamente o gesto.

Da encosta, sentada, cintilava uma luz, pálida amarelada.
Ela usava aquela decorada orla, ria o tempo eterno.
Amanheceu bela, recordada, agradecida, confiante, optimista.

O efeito do defeito - Gabriela

Parte 7
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- Tarde 10 de Janeiro -

     - Não posso acreditar... - disse Gabriela em voz baixa e desacreditada - Estou a ouvir música!

     Soraia, como sua amiga há alguns anos, sabia que Gabriela era incapaz de ouvir além dos pensamentos transmitidos em voz pelas pessoas, nunca músicas ou sons externos.

     - "Tens mesmo a certeza?" - pensou para Gabriela.
     - Sim!
     - "Não.. ouço música nenhuma..." - pensou Soraia apenas para si concentrando-se no interior do café.

     Gabriela então compreendeu. Não estava a ouvir música de aparelho algum como desejava, não estava a ouvir pelos seus próprios ouvidos... Sentiu-se decepcionada. Continuava a ouvir a música

     - Quero sair daqui - disse Gabriela
     - "Então... e o lanche...?"
     - Não quero...

     Ambas levantaram-se e sairam do interior do café. Nem pararam para se despedirem de Vasco. Enquanto passavam pelo recinto da esplanada, Soraia voltou sem explicação ao café.

     Gabriela parou. A música era mais nítida. Olhou em seu redor. Nada fazia sentido.

     "Não faz sentido. De onde virá? De alguma pessoa?", pensou Gabriela, que continuava a concentrar-se na fonte da música. Até certa altura, de entre a melodia, uma voz falou calmamente.

     - "Uma altura, o pai contou-me um segredo..."

     Gabriela detectou, instintivamente, o rapaz que se encontrava na esplanada a alguns metros de si. A sua voz era clara e fluente, sem interrupções de vários pensamentos simultâneos, ao contrário de todas as outras pessoas. Olhou o rapaz e continuou a "escutar".

     - ...contou-me um segredo, que ele tinha um dom parecido com o meu. E que uma maneira que ele tinha de o fazer parar ou abrandar era bebendo..."

     Soraia regressou do café e aproximou-se. Tocou no seu braço em sinal de prontidão.

     - "Esqueci-me... do telemóvel... vamos?" - disse Soraia.

     Gabriela permanecia concentrada.

     - "Ainda ouves... a música?" - pensou olhando para ela.
     - Melhor que isso. Sei agora de onde ela vem - respondeu aproximando-se do rapaz acompanhado.
     - "Onde vais?" - perguntou a amiga.

     Gabriela parou por instantes na direcção dele. Algumas vozes da mulher que o acompanhava não eram tão distintas, sobretudo, porque a voz do rapaz era também mais apelativa.

     - "Sim, lembro. Primeiro foi a aprendizagem demasiado rápida para a minha idade devido à memória fotográfica. As alucinações mais tarde. E agora isto da reprodução mental..."

     Gabriela arregalou os olhos. A mulher que acompanhava o rapaz pressentiu a sua presença e voltou-se para ela. Agindo naturalmente, desviou o olhar deles e voltou para trás para perto de Soraia.

     - "Que te deu?" - perguntou.
     - Não vais acreditar...
     - "Em quê?"
     - Era aquele rapaz...
     - "Que tinha... ele?... é giro..." - disse Soraia espreitando pelo ombro da amiga.
     - A música, Soraia, vem dele.
     - "Como assim?... Da cabeça dele... também?"
     - Sim!

     Gabriela e Soraia afastaram-se da esplanada. Seguiram pela praça até ao outro lado da rua que os separava e permaneceram ali, podendo ainda observar o rapaz de longe.

     - "Porque... não foste falar... com ele?"
     - Está acompanhado pela mãe que é médica.
     - "Mãe? ...como sabes?... esquece... Eu teria... falado com ele..."

     Gabriela revirou os olhos.

     - "Porque... será... ou como ele faz... isso?"
     - Não sei...

     Gabriela não pensou em possibilidades. Apenas um pensamento sobressaía no assunto: alguém mais também possuía algo em comum como ela. Diferente mas comum. Por isso, só haveria uma coisa a fazer.

     - Tenho que o conhecer para falar com ele.
     - "Gostaste dele..." - pensou Soraia, sorrindo.

     Gabriela sentiu o mesmo. Fascinou-a.

O efeito do defeito - Maria

Parte 7
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- Tarde 10 de Janeiro -


     - E o que a mãe iria pensar de ti, Carolina? - perguntou Maria tocando a irmã.

     Carolina fez uma pausa com os olhos postos na almofada.

     - Eu sei que ainda não entendes, mas um dia irás, que existem pessoas que por vezes não compreendem as situações diferentes pelas quais não estão a passar.

     Maria lembrou Mateus. Da misteriosidade dele em particular.

     Carolina abraçou-se à sua irmã.

     - Percebes? Não podes mostrar às pessoas que és mais forte que elas. Porque elas não o são e por isso vão te fazer sentir diferente. Muitas delas troçam e só querem o mal da inveja. Eu sei que a mãe não é assim, mas, mais cedo ou mais tarde tu irias contar a todos os amigos da escola e foi melhor assim.
     - Então para que tive tanta força de manhã? - perguntou a pequena, triste.

     Maria encolheu os ombros e expressou-se com uma interrogação. "Porque haveria de ter tido a mesma força que eu de manhã e agora não?" - questionou-se - "E de onde viria? E de onde vem a minha? Como é possível? Devo experimentar se ainda... e também tenho força?".

     - Sim? - perguntou Carolina.

     Maria tinha-se distraído com os seus pensamentos.

     - Não percebi, mana.
     - Quero sair e passear - repetiu Carolina.

     Maria pensou e sorriu.

     - Vamos então até ao parque. Combinado?

     Carolina levantou-se da cama e puxou pela mão da irmã. Ambas desceram as escadas até à sala de estar. Sentado, Bernardo lia o jornal descontraído, de perna cruzada e casaco pendurado nas costas do sofá. Preocupada, a mãe apareceu vinda da cozinha.

     - Que passou, filha? - perguntou a mãe.
     - Nada, mãe. Ela só quer ir passear um pouco - disse Maria.
     - Querem que o Bernardo vos leve?

     Sem hesitação alguma, Carolina apertou a mão de Maria.

     - Não é necessário, mãe - respondeu Maria.

     Sairam de casa e seguiram a pé até ao centro da cidade. Pelo caminho conversaram.

     - Porque é que o pai não está mais connosco? - perguntou Carolina.

     Maria tentou ignorar ao princípio.

     - Teve que ir embora... - respondeu.
     - Sim, mas porquê?
     - Porque a mãe já não gostava dele e tinham muitos problemas juntos.

     Maria desviou o olhar. Carolina continuou a olhar em frente a pensar. A rua inclinava numa subida íngreme. No final, havia um cruzamento. Viraram à esquerda e desceram para o centro. O parque estava perto.

     - Eu gostava mais do pai - disse a pequena.

     "Eu também.", pensou Maria - "Mas ele tinha mudado tanto..."

     - Achas que o voltaremos a ver? - perguntou Carolina.
     - Um dia, talvez - respondeu Maria encolhendo os ombros.
     - Ainda gosta de nós?

     Maria voltou-se para a irmã e sorriu.

     - Sim, ainda gosta de nós. É o nosso pai.
     - É que eu não gosto do Bernardo, faz-me ter medo.
     - A mim também. É duro, mas não é má pessoa.
     - Porque é que a mãe o levou para casa? - perguntou a pequena.
     - Foi a decisão dela. Não queria tomar conta de nós sozinha.
     - Podia ter encontrado alguém mais simpático...

     Maria sorriu. O parque ficava ao fundo da avenida e bastava-lhes atravessar a rua. Nesse momento um automóvel preto estacionou à frente de ambas, assustando-as.

     - Mais cuidado! - gritou Maria.

     O condutor saíu do carro calmamente. Olhou-as e inclinou-se.

     - Peço imensa desculpa por vos ter assustado, não era a minha intenção - disse gentilmente.

     Carolina observou com atenção o homem alto e vestido de negro e sorriu para ele. Em resposta, o homem acenou-lhe com a mão.

     - Dá-me a mão. Vamos - pediu Maria, entrando pelo parque.
     - Acho que conheço aquele senhor... - disse Carolina olhando ainda para trás.
     - Sim? De onde?
     - Do Hospital - disse sorrindo.

     Continuaram a passear pelo parque. Lancharam juntas num café e sentaram-se nos bancos do jardim a comer gelados. O dia estava calmo e suave.

     - Tiveste muito medo no Hospital? - perguntou Maria.
     - Não. A enfermeira era simpática e estava sempre comigo - riu.

     Maria observou-a. Pensou para si própria como a sua irmã crescia. E como o tempo passava.

     - Ela disse que eu fui atropelada por um carro, mas eu não lembro.
     - É normal - confortou Maria acariciando o rosto da irmã.
     - Ela também disse que sou muito forte - pausou e continuou - Será que ela sabia?
     - Ela não se estava a referir a essa força, mas sim à da vontade. Quis dizer que és forte por dentro - Maria piscou o olho.
     - Tu também és muito forte, mana - disse a pequena.

     Ambas terminaram o gelado e levantaram-se dos bancos. De volta, pelo mesmo caminho, Maria distraíu-se enquanto que um rapaz cheio de roupa e de pressa embateu sem querer nelas. As roupas espalharam-se pelo chão. Umas chaves de automóvel caíram sobre os pés de Carolina.

     - Peço imensa desculpa - disse Maria.
     - Não... faz mal - balbuciou ele.

     Carolina agachou-se e apanhou as chaves. Aproximou-se do rapaz e entregou-lhe-as. Maria sorriu para sua irmã e olhou para o rapaz.

     - Obrigado... - agradeceu ele.

     Sem explicação alguma, o rapaz agarrou as suas roupas violentamente e desapareceu a correr pelo caminho em segundos.

     "Que estranho.", pensou Maria.

     - O que tinha ele, mana? - perguntou Carolina.
     - Pressa, muita pressa - disse - Vamos para casa.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 6
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- Tarde 10 Janeiro -

     Gonçalo ligou o motor do carro e arrancou. Seguiu a estrada até uma rua menos trafegada. Ali, parou o carro e desligou-o. Os prédios altos de cada lado daquela rua estreita sombreavam o carro como se fosse o início da noite adiantada. Trocou as suas roupas velhas e vestiu as novas que havia roubado na loja há alguns minutos atrás.

     Enquanto se vestia pensava na menina. Não queria acreditar, a menina com que havia embatido despropositadamente no parque era a mesma menina que havia atropelado há cinco meses atrás, na noite a seguir que havia fugido do Hospital.

     O seu lado sensível sentia-se aliviado pela menina se encontrar bem de saúde e por nada de pior lhe ter acontecido depois do acidente. Enquanto que o outro lado, o lado de culpa, fazia-o repugnar a si mesmo pelo sucedido. Nunca se iria perdoar pelo que havia feito naquela noite remota.

     Olhou-se ao espelho e com a manga da camisola suja, limpou o sangue da cara. Olhou o vazio e esperou. Saiu do carro e abriu a bagageira da traseira. Havia uma mochila como Raphael lhe havia dito. Dentro da mochila havia uma tesoura de arame e uma lanterna, nada mais. Fechou a mala e voltou para o interior. Abriu o porta-luvas e agarrou um pequeno mapa com uma nota escrita: a morada onde deveria se encontrar nessa noite.

     Gonçalo ligou o carro.

     "Preciso de procurar agora a morada para chegar a horas.", reflectiu. A morada na nota não ficava muito longe de onde estava. Seguiu caminho para lá.

     Parado num semáforo, o rádio tocava uma música. Gonçalo olhava para todos os lados, em particular, por receio. Nesse mesmo momento, os sinais dos peões piscavam e uma mulher atravessou-se em frente nos últimos segundos. Gonçalo reconheceu-a.

     "A mãe do Mateus...", uma súbita adrenalina picou-lhe o peito.

     Célia, que saía do seu turno do Hospital, passou a correr na passadeira olhando de seguida para trás para o carro e reconhecendo-o por breves instantes.

     Gonçalo apercebeu-se que a mãe do seu amigo o havia avistado e aproximava-se do carro. Sem hesitação acelerou... Enquanto fugia, o medo apoderava-se dele, desabilitando-lhe os pensamentos e as decisões.

     Minutos depois, Gonçalo desligou o carro ao chegar à morada descrita. Olhou em seu redor. Haviam algumas casas, uns quantos cafés até ao fundo da rua comprida e um orfanato. Estava a entardecer. Voltou a entrar no carro e estacionou-o legalmente perto do orfanato. Faltavam algumas horas até à hora prevista, por isso permaneceu no carro, para descansar um pouco e pensar.

     Muitos medos passavam pela sua cabeça. Ter visto a mãe de Mateus ainda lhe trouxe mais tormento. "Como haverei de me encontrar com o Mateus?", interrogou-se, "Como lhe vou contar tudo o que aconteceu? Como reagirá ele?"... Gonçalo se encostou no banco.

     ...

     Algumas horas haviam passado. Nas suas linhas de ideias e pensamentos misturadas com a música do rádio, Gonçalo quase adormecera, se não fosse por lhe terem batido na janela do carro.

     A noite já se tinha envolvido e as luzes da rua estavam todas ligadas. Gonçalo ficou surpreso, Fábio esperava-o fora do carro. Os dois abraçaram-se.

     - Que estás aqui a fazer? - perguntou Gonçalo, sentido de felicidade.
     - Vim ter contigo, meu! Estava com saudades tuas!
     - Mas, como me encontraste?
     - Uma pessoa que sabe encontrar pessoas veio ter comigo e indicou-me o caminho - respondeu Fábio.

     "Raphael", pensou Gonçalo.

     - E o MD e os rufias do Porto? Como te livraste deles? - perguntou Gonçalo preocupado.
     - Oh, meu, tiveram a sua sorte na mesma noite em que vieste para cá.
     - Como assim? - Gonçalo ficou curioso.
     - Foram todos apanhados! Não sei como ou porquê, mas foram. Alguém os chibou e prepararam-lhe uma armadilha - Fábio riu, batendo com o punho no ombro de Gonçalo.
     - Há duas noites atrás?
     - Sim - respondeu o amigo.
     - Nem vais acreditar! Na noite em que vim para Braga, fui cercado por eles! - contou Gonçalo - Devias ter visto a cara deles quando me viram ainda vivo! Mas acho que não me ia safar daquela. Foi então que ouvimos um tiro que chamou a atenção da bófia. E todos fugiram.

     Fábio esboçou um sorriso de convencido e lembrou-lhe.

     - Lembras-te aquela arma que encontramos e que só tinha uma bala?
     - Nããão! - admirou-se Gonçalo - Foste tu quem disparou?
     - Tive que te seguir para saber se chegavas bem. Que seria de ti sem mim, meu?

     Os dois riram e cumprimentaram-se. Continuaram a conversar por breves minutos.

     - Conta-me, o que te pediu ele?
     - O Raphael? Que me encontrasse contigo, nada mais.
     - Esta rua não parece ter nada de especial.

     Ao fundo da rua, um homem aproximava-se.

     - Raphael? - questionou Gonçalo - Estamos aqui. E agora?
     - Olá rapazes.

     Raphael, sempre misterioso, abriu a mala do carro. Agarrou a mochila e colocou-a sobre o ombro.

     - Vamos apagar umas luzes.

O efeito do defeito - Maria

Parte 5
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- Manhã 10 de Janeiro -

     - Bom dia, mana - cumprimentou Carolina ao seu lado - Queres ver uma coisa?

     Maria, resistindo ao sono, olhou-a com curiosidade. Carolina contornou a cama até ao fundo dos pés. Agarrou com as duas mãos por debaixo e elevou a cama a cinquenta centímetros do chão durante alguns segundos. Maria segurou-se surpresa.

     - Como fizeste isso? - perguntou perplexa, levantando-se da cama e segurando os braços da pequena.
     - Não sei. Mas sou forte agora - disse alegre.

     Maria não queria a acreditar no que acabara de assistir. Diversas perguntas passaram-lhe pela cabeça, algumas ainda mais confusas que as anteriores. A preocupação foi a primeira a manifestar-se.

     - Não contes nada aos pais. Prometido?
     - Porquê? - perguntou Carolina contente e desejada de o fazer a toda a gente, como uma nova brincadeira.
     - Vou contar-te um segredo. Eu também tenho muita força como tu. Por isso não podemos contar nada a ninguém. Prometes?

     Carolina baixou os olhos de alguma decepção. Maria abraçou-a, preocupada.

     - Prometes? - perguntou, sorrindo.
     - Sim - prometeu, pensando na sua irmã - Mas porque não podemos contar nem ao pais?

     Maria levantou-se. Sabia que "empatar" não seria uma solução infinita mas teria que servir até encontrar respostas às suas próprias perguntas.

     - Porque eles ainda andam zangados um com o outro - disse - e se souberem disto, vão ficar muito mais preocupados e com medo que alguma coisa possa acontecer.
     - Porque eu posso me magoar, não é?
     - Exacto, entendes? - sorriu de alívio.

     Carolina baixou os olhos.

     - A culpa foi minha... - murmurou.
     - Oh meu anjo... Porquê? - perguntou Maria, sentindo pena pela expressão da sua irmã.
     - Se eu não tivesse fugido de casa, eles não tinham discutido ainda mais. E não me tinha acontecido nada...

     Maria ajoelhou-se novamente frente à sua irmã.

     - Não tiveste culpa. Eu mesma tinha fugido. E o acidente não foi culpa tua também.
     - Tenho medo dele...

     Maria abraçou-a.

     - Não digas isso. Vai tudo correr bem. A mãe veio te dar um beijo de "boa noite" quando adormeceste ontem. Ela gosta muito de ti. E sei que ele também.
     - Então porque discutem por minha causa?
     - Porque são adultos, Carolina - Maria sorriu e Carolina achou um pouco de graça - Mas eles adoram-te e querem tudo de bom para ti, mesmo que não pareça assim. Quando cresceres irás perceber melhor.

     Carolina esboçou um sorriso de anjo, com o seu cabelo longo e loiro a brilhar como uma aura. Esticou os braços a pedir um abraço e Maria agarrou-a novamente.

     - Tanta forçaaa! Ai! - gritou alegre, mas séria quanto à força.

     Carolina riu e correu pela casa.

     Preparam e tomaram o pequeno-almoço juntas. De seguida tomaram duche e vestiram-se. O dia estava brilhante e alegre. Aproveitanto um momento sozinha,Carolina dirigiu-se à sala e agarrou o sofá, levantou-o de um lado o suficiente para se pôr debaixo dele, pousando-o novamente. Enquanto isso, Maria, lembrou o mais absurdo. Há cinco meses atrás, ela mesma havia revirado um automóvel. Não fazia a mínima ideia de como o tinha feito. Mas aconteceu e apartir desse dia nunca mais voltou a experimentar a mesma força e desespero. Maria só tinha que esperar que nada de mal acontecesse com a sua irmã Carolina.

     "Que posso eu fazer?", pensou. Quem poderia ajudar duas raparigas que não sabiam o que tinham e o que tinham era fora do comum e, quem sabe, muito perigoso. Maria continuava a pensar...

     Pela janela, Carolina viu os pais chegarem de carro pela rua.

     - Mana, chegaram!
     - Vamos esperar por eles na porta, rápido.

     As duas correram e riram até à porta da entrada.

     - Bom dia! - gritou Carolina correndo pelo jardim de flores brancas.

     A mãe abraçou-a de entusiamo a fugir-lhe pela garganta enquanto chamava por ela, a cumprimentava e lhe dava as boas vindas a casa. Pediu mil desculpas por não a poder ter ido buscar ao Hospital. A alguns metros de distância, o padastro da menina permaneceu sereno e imóvel, vestido de fato cinzento e sapatos clássicos mas velhos, assistindo sem qualquer sinal de emoção no seu rosto enrugado.

     Maria observou-o de canto e apercebeu-se. Não era algo fora do vulgar. Ele fora sempre muito reservado e misterioso. Aproximou-se da mãe e da Carolina. Todas entraram na casa e sentaram-se a conversar, excepto o padastro, que permaneceu na rua a fumar. Maria repetiu os conselhos do médico para a mãe.

     - O médico explicou que a fisioterapia estava terminada, a Carolina estava cem por cento recuperada. Não receitou nada. Apenas que deveria praticar algum desporto ou exercícios...

     Carolina ouvia com atenção, mas algo novo e imenso nos seus olhos queria soltar-se e mostrar-se pelos cantos da casa. Uma ideia nova ou um pensamento. Um segredo. Segurava a mão da sua mãe. Chamava constantemente por ela quando não lhe dirigia a atenção, por falar com Maria sobre as condições que o médico havia proposto para a recuperação final de Carolina. Maria estava a aperceber-se o quanto Carolina se estava a entusiasmar com a presença da mãe.

     - Mãe, mãe! - chamava Carolina.
     - Sim, Carolina, o que se passa?
     - Quero mostrar-te uma coisa nova - informou cantarolando.

     Maria lançou um olhar sério a Carolina, mas esta não lhe retribuiu um olhar.

     - Ai sim? E o que é? - perguntou a mãe, seguindo a brincadeira.

     Em voz baixa falou.

     - Mas o Bernardo, o pai, não pode saber, prometes?

     Maria levantou-se de imediato.

     - Carolina, não!
     - Hoje levantei a cama da mana no ar, sozinha - concluíu, ignorando Maria.
     - Que parvoíce, filha - riu a mãe.
     - Então eu mostro - apressada, a menina correu em volta e agarrou-se ao mesmo sofá.

     Maria assistiu sem reacção. Carolina esforçou-se mas o sofá nem sem moveu um centímetro.

     - Filha, não faças isso - falou a mãe.

     O rosto de Carolina entristeceu de confusão. Não compreendia como não conseguia repetir a mesma proeza. Enquanto isso, Maria também estava confusa. Mas de certa forma, aliviada pela mãe ter entendido como uma brincadeira.

     Carolina tentou uma segunda vez. De novo, o sofá pesava-lhe toneladas. Birrou e fugiu para o seu quarto. Maria seguiu-a.

     - Já não sou forte... Queria que a mãe visse... - soluçou a pequena.

     Maria deitou-se do seu lado. Não percebia o que havia acontecido. Era inexplicável. Entre tantas questões, Maria decidiu experimentar se ainda conseguia ter a mesma força que nunca mais usou.

Longe de casa

Era noite e a lua já tinha mergulhado no horizonte.
O orvalho caía tão suavemente que pairava sobre a areia húmida.
Havia uma única luz ao nosso lado, o resto era escuridão.
A água salgada rugia lá do fundo.
Contei estrelas. Procurei nelas desenhos. Apontei. Rimos.
Estavamos no meio do nada mas senti que havia tudo à nossa volta.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 5
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- Tarde 10 de Janeiro -

     Meio dia havia passado. Gonçalo adormecera depois da noite em branco. As últimas noites não estavam a ser agradáveis e dormir o necessário tornava-se um castigo. Gonçalo sentia a falta das noites em branco na companhia do seu companheiro de rua, Fábio.

     Acordou. O seu corpo parecia anestesiado.

     O ambiente no quarto do motel era quente e abafado, um ar seco e um pouco poeirento, reluzente por entre as faixas de claridade vindas do exterior através da janela semi-aberta. As decorações pobres e baratas tornavam o quarto esquecido e desabitado por décadas.

     Gonçalo levantou-se. O quarto de banho ao lado da divisão era pequeno e pouco higiénico. Enxaguou as mãos e lavou a cara. Voltou ao quarto e retirou o saco com o dinheiro debaixo do colchão. Levantou o seu casaco preto no ar, voltou-se para a luz e esta trespassou o tecido desgastado e rasgado.

     Desceu pelas escadas até ao balcão de entrada e entregou a sua chave. Pagou a estadia no mesmo acto. O senhorio, com cara de poucos amigos e desfigurada de um dos lados, guardou o dinheiro como um mendigo esconde o seu último pedaço de pão.

     Nas ruas, Gonçalo deparou-se comuma loja fora do centro das atenções. Entrou e logo observou a disposição dos corredores e das câmaras de vigilância. Escolheu um novo casaco, semelhante ao seu. Agarrou aleatoriamente num par de calças e de seguida roupa interior. Dirigiu-se imediatamente pelo balcão e saiu da loja sem dar nas vistas, mantendo um ar de naturalidade.

     - Gonçalo...? - chamou-o.

     Não queria acreditar na voz, surpreendeu-lhe a lembrança. Por isso, voltou-se sem hesitar.

     À sua frente, a imagem famíliar vestida de negro surpreendeu-lhe a vista.

     - Raphael! - respondeu-lhe Gonçalo com um sorriso nos lábios.
     - Sim. Como prometido, aqui estou eu.
     - Porque levou tanto tempo?! - perguntou num tom despercebido de revolta.

     Gonçalo abraçou-o sem receber uma resposta.

     - Gonçalo, porque roubaste esta roupa se tens dinheiro contigo?

     Gonçalo envergonhou-se de olhos postos no chão. O homem de negro colocou-lhe uma mão sobre o ombro e direcionou-o pela rua. Os dois começaram a caminhar.

     - Veio para me mostrar o que aconteceu realmente com a minha família? - perguntou Gonçalo, esperando uma resposta clara e directa.
     - Tudo a seu tempo, Gonçalo - disse Raphael misteriosamente.

     Gonçalo parou e Raphael deu mais dois passos, voltando-se depois para ele.

     - Contudo, preciso da tua ajuda.
     - Da minha ajuda? - perguntou Gonçalo, curioso e ao mesmo tempo impaciente.
     - Sim - pausou - há um rapaz muito especial com quem te deves encontrar com ele esta noite - disse, entregando para Gonçalo uma chave de um automóvel.
     - Como assim, especial? Como eu?
     - Sim. Mas... - e sorrindo - diferente. É ele quem te vai ajudar a descobrir. Eu sei que vai. E preciso que nos vás buscar.
     - Não estou a compreender.

     Os dois continuaram a falar e a caminhar pela rua até ao parque do centro.

     - Está ali ao fundo, à entrada deste parque. É um carro preto e tem uma mochila na bagageira que precisarás dela mais tarde. A morada e a hora está no porta-luvas.
     - Mas...
     - Tudo a seu tempo, Gonçalo. Preciso que confies em mim. Eu prometi-te e estou a cumprir. Com o tempo compreenderás.

     Raphael afastou-se.

     - Tanto como tu, eu também quero descobrir a verdade.

     Gonçalo permaneceu no parque, com as roupas nos seus braços, vendo o homem partir.

     Quando veio a si, apressou-se em direcção ao carro. Distraído, embateu com duas raparigas. As roupas caíram sobre o chão, assim como as chaves do automóvel.

     - Peço imensa desculpa - disse uma das raparigas.
     - Não... faz mal - balbuciou enquanto se organizava.

     Enquanto pegava nas suas roupas, a menina mais nova deu-lhe para a mão a chave.

     - Obrigado... - agradeceu. Olhando para a menina, Gonçalo petrificou. O ambiente do parque tornou-se silêncioso e sufocante. Agarrou as suas roupas num acto abrutalhado e correu sem explicação.

     Entrou no carro e atirou as suas roupas para os bancos de trás. Esfregou a cara com as duas mãos como se algo lhe estivesse a agarrar. Gonçalo estava a experienciar medo e, sobretudo, culpa... Após o ter feito com tanta força e sem se aperceber, uma linha de sangue escorria-lhe por um lado da cara. Tinha-se arranhado com as próprias mãos.

     "Não posso crer...", pensou para si, "Como pode isto acontecer...?"

     Gonçalo tremia das mãos. Nem nas chaves conseguia segurar. Reencostou-se no banco e tentou relaxar. "Como pude ter feito uma coisa daquelas e fugir..." O seu mundo estava a virar do avesso e a tornar-se cada vez mais pesado. Sentia a adrenalina correr-lhe pelo corpo, fazendo tremer ainda mais.

     Olhou pelo retrovisor e observou o seu reflexo nele. A ferida sarou-se em segundos, mas o sangue secou na sua cara. A sua expressão era de revolta.

O efeito do defeito - Mateus

Parte 6
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- Tarde 10 de Janeiro -


     A caminho do café, para se encontrar com a sua mãe, como combinado, Mateus parou em frente a uma livraria. Na montra, olhando, viu um livro que lhe chamou a atenção. Um livro que havia lido por último.

     Sorriu. Era um bom livro.

     Ao chegar ao café, acenou ao funcionário de mesa e sentou-se no exterior, na esplanada. Mateus confortou-se na cadeira sem reparar em nada ou ninguém. Inspirou pela boca como quem queria soltar um grito, mas conteu e expirou calmamente.

     A sua mãe ainda não havia chegado. Sozinho, relembrou e ouviu música como se revivesse um momento em lembranças.

     Vários minutos se passaram.

     - Como estás filho? - perguntou a mãe ao chegar perto dele.

     Mateus estava distraído. Célia sentou-se ao seu lado e tocou-lhe no braço.

     - Ah! Olá, mãe... Estou melhor... - respondeu modestamente.

     Célia tirou o seu casaco e pendurou-o sobre a cadeira do lado. Pousou a sua mala no chão ao lado dos seus pés e retirou os óculos. Observou e Mateus continuava distraído e dividido no espaço.

     - Conta-me o que se passou ontem no parque de estacionamento... - pediu gentilmente a mãe.

     Mateus não respondeu. Célia fechou os olhos.

     - Eu sei que ontem não deveria ter saído para um outro turno, mas eles precisavam muito de mim...
     - Eu sei, compreendo...
     - Mas agora estou aqui. E quero saber o que te está a acontecer desta vez.

     Mateus olhou-a de relance.

     - Como mãe, é claro... - afirmou Célia.
     - Não sei - respondeu Mateus - Tu mesma me disseste que seria muito improvável ele ter saído do hospital no estado de saúde em que estava. Mas já passaram cinco meses e o Gonçalo...
     - Eu já te tinha contado! - interrompeu ela - O Gonçalo foi transferido para fora do país, filho, para cuidados intensivos. E teremos que esperar que ele regresse... - Célia fechou os olhos novamente por um momento, pensando para si própria. Engoliu em seco e continuou - Eu sei o quanto tu queres vê-lo, mas não tem até agora permissão para ser visitado...
     - Não faz sentido!

     Célia não olhou Mateus nos olhos.

     - Eu sei que não. Mas são as normas lá, diferente das nossas normas cá.

     Mateus encolheu-se na sua cadeira.

     - Hoje mesmo ligarei para ser actualizada e saber mais pormenores sobre ele. Já passaram cinco meses sim. Creio que possa ter melhorado muito... - Novamente, Célia desviou o olhar do seu filho enquanto contava o que também parecia não ser credível para ela própria.

     - Porque teve ele que ir sem nos podermos despedir dele?
     - Na altura foi uma emergência. Já falamos sobre isto, melhor que eu tu lembras-te disso.

     Mateus recompôs-se.

     - Eu sei... É que aconteceu tudo de uma vez só!

     Entretanto, o funcionário de mesa aproximou-se.

     - Vão desejar algo?
     - Estamos a aguardar um pouco. Obrigado - sorriu Célia.
     - Com licença, então - respondeu o funcionário.

     Passaram dois minutos de silêncio.

     - Temos tanto para falar, Mateus.
     - Eu sei... - retribuiu ele.

     Célia corrigiu a posição da sua cadeira e aproximou-se de Mateus.

     - Como foi lidar com a rapariga real dos teus delírios?
     - Diferente... - respondeu. Pausou para pensar - Foi tão estranho, sabes... Não é a mesma rapariga com que imaginei quase este tempo todo. E eu tenho noção de que não é...
     - A rapariga da tua imaginação pode ter a mesma aparência que esta rapariga chamada Maria, mas a sua personalidade não é...
     - Nem a sua voz...
     - Exactamente. Tu conviveste com uma imaginação, uma criação tua. Nunca poderia ter as mesma qualidades e personalidade que a verdadeira.
     - Eu sei, mãe, e foi isso que me confundiu mais naquele momento. Ao ver a mesma pessoa, saber que uma era ficção e a outra real e no entanto, esperei tudo o que havia vivido com a primeira mas... não era ela.
     - É tão confuso, sim. É como conhecer algo novo que não esperavamos num amigo - finalizou Célia.

     Os dois olharam-se.

     Mateus repensou no que havia pensado nessa manhã. "Será que voltarei a ver a rapariga da minha imaginação?"...

     - Mateus... gostava que me contasses sobre o que falaste sobre o pai.
     - Não quero - respondeu levantando a voz e revirando os olhos.

     Célia deu por entender que não insistiria. Mateus apercebeu-se e acalmou-se. Pensou durante alguns segundos e arrependeu-se.

     - Uma altura, o pai contou-me um segredo...
     - Eu sei - respondeu Célia.
     - ... que ele tinha um "dom" parecido com o meu. E que uma maneira que ele tinha de o fazer parar ou abrandar era bebendo...
     - Filho... porque nunca me contaste?
     - Não sei... queria experimentar se resultava... Mas não resultou. Ele estava enganado e repara no que aconteceu, só piorou...

     Célia colocou uma mão sobre a sua boca.

     - Eu sei que errei. Agora sei...

     Mateus continuava a ouvir música dentro de si. Célia retirou a mão da sua cara e agarrou a mão do seu filho.

O efeito do defeito - Mateus

Parte 5
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- Manhã 10 de Janeiro -


     Por mais que uma situação podesse desmoronar o estado de espírito de Mateus, ele conseguia sempre adormecer, descansar e repôr as suas ideias em ordem pela manhã. Não que o conseguisse voluntariamente, apenas era capaz de o fazer com o apoio da sua capacidade. E, naturalmente, a sua mente poderosa necessitava de mais descanso que qualquer uma outra. "Dormir" implicava ser uma necessidade maior que qualquer uma outra, ou então, o dia seguinte seria complicado e doloroso.

     Mateus havia compreendido essa necessidade e os seus horários eram cumpridos como regras. Facilmente, para ele, que a memória era um utensílio muito mais prático que o comum.

     O sol estreitava por mais uma manhã.

     Mateus deixou-se ficar a descansar até mais tarde. A temperatura fresca do seu quarto e a luminosidade harmoniavam o ambiente. Deitado, começou a ouvir as suas músicas de memória.

     - Tenho fome - afirmou a si próprio.

     Levantou-se calmamente da sua cama e caminhou para a cozinha. Abriu o frigorífico e retirou o leite. Agarrou uma taça branca do armário e os cereais na porta do lado. Encheu a taça de cereais e enquanto os devorava, aos poucos, acrescentava um fio de leite. Sorriu sozinho.

     Admirou-se por ser capaz de aletrar o volume com que a música ecoava dentro da sua cabeça. Assim podia perfeitamente estar atento ao exterior sem interromper a sua melodia de que tanto gostava. Ser capaz daquela proeza fazia-o pensar que poderia superar qualquer problema na sua vida. A música acalmava-o e fazia-o sentir maior.

     Depois da refeição matinal, Mateus voltou para o seu quarto.

     Deitado, começou a pensar. A música parecia apoia-lo na sua concentração. Era a música da sua infância que ouvia com o seu pai. A mente de Mateus funcionava assim. Um pequeno detalhe desencadeava todas as memórias, as mais próximas e mais importantes.

     Mateus lembrou a primeira conversa com Maria na noite em que se encontraram.

     "Seria o facto de estar embriagado daquela maneira e a simples ideia de ela ter falado no seu pai que me fez entender que eu sentia falta do meu pai? Seria o delírio relacionado com ele? Então porquê a minha saudade por ele se mascarou em forma feminina, e porquê a Maria? Porquê o delírio habitual com ela? Porquê a minha cabeça ser tão complicada que nem eu próprio me consigo entender?", Mateus revirou-se na cama, "Porquê a minha mente me faz acreditar que ela é real quando apenas é uma ilusão criada por mim? Será um sinal do meu subconsciente? Como posso perder a noção disto quanto estou em delírio? Como me apaixonei por uma ilusão minha?"

     "São dez horas e cinquenta", pensou seguro e virando-se para o outro lado da cama, Mateus olhou para o relógio e confirmou. O telefone tocou de seguida.

     - Bom dia, mãe.
     - (Bom dia, filho. Liguei para saber se estava tudo bem.)
     - Sim, está. Vais trabalhar até mais tarde? Ontem voltaste para o Hospital e nem dormiste.
     - (Não, hoje vou sair para almoçar e terminar o meu turno. Logo à noite descansarei.)

     Houve um momento de silêncio.

     - (Não te esqueças datua medicação, está na hora.)
     - Sim, eu sei. Estou mesmo agora a pegar nela.
     - (Vem ter comigo, Mateus, ao café do costume para falar-mos. Depois do almoço, combinado?)
     - Claro, mãe.
     - (Tem cuidado. Um beijo. A mãe tem que ir.)
     - Um beijo, mãe.

     Mateus pousou o telefone. Segurou dois comprimidos e tomou-os.

     Ao engoli-los, pensou para si. "Alguma vez mais verei a rapariga? Poderei eu falar com ela consciente?", Mateus preparou-se. Tomou um banho calmo e vestiu-se. Almoçou o que restava do dia anterior, que estava guardado no frigorífico. A seguir, sentou-se em frente à televisão. Mas sem a ligar.

     "Passaram cinco meses e três dias e ainda não consegui perceber o que é esta ilusão.", pensou, "Como serei capaz de me controlar da próxima vez? E se isto continuar para sempre?"

     Mateus apercebeu-se de que ouvia uma outra música. Associando, relembrou o momento. Era uma música que havia ouvido com o seu amigo Gonçalo. Mais uma vez, várias memórias surgiram.

     Levantou-se e saiu de casa com brutidão. Uma música diferente, selvagem e alta, apedrejava os seus pensamentos para os poder controlar. Não conseguia afastar alguns deles. Um, em particular, que o fazia sentir. A recém saudade pelo amigo.

     No momento da frustração e da memória, Mateus correu em direcção ao único lugar onde menos queria ir. Apercebendo-se, deixou-se levar. Percebeu que não podia fugir, a sua mente por vezes tinha que lhe mostrar a verdade. Ao chegar ao cemitério caminhou calmamente.

     Aproximando-se, baixou a cabeça em respeito. Por vários minutos, permaneceu quieto e em silêncio. Em total silêncio. Retribuíndo o tempo em que jamais voltou a visitar a família de Gonçalo.

     Levantou a cabeça. Afastando-se o mais lentamente possível. Olhou com atenção.

     "Uma flôr branca", pensou, "Como ainda está viva depois de tanto tempo... Não, não é a mesma.", reflectiu, escapando um sorriso de tontice. Mas a ideia não era de desvalorizar. Claramente, a flôr simbolizava algo.

     Mateus regressou, pensando sobre o assunto com mais calma, para o encontro com sua mãe.

O efeito do defeito - Gaspar

Parte 6
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- Manhã 10 de Janeiro -

     - Ouvi dizer que hoje vamos almoçar batatas fritas! - informou o pequeno Jorge.
     - Batatas fritas? Há tanto tempo que não comia batatas fritas! - sorriu Duarte.
     - Podera! Aqui nunca cozinham nada disso...
     - Que terá feito o Gaspar para estar na directoria agora? - perguntou Samuel.

     Todos encolheram os ombros.

     - Que estavas a fazer perto da cantina? - perguntou a directora.

     Gaspar não respondeu. Tão pouco olhava nos olhos da directora. Apenas observava a pequena sala decorada aos anos 40.

     - Tens noção do perigo em que te colocaste ao tentar invadir um local inseguro? Gaspar?

     Gaspar levantou os olhos e respondeu em voz reprimida.

     - Não estava lá para entrar.
     - Então, o que te levou a sair da aula?
     - Apenas queria ver.

     A directora levantou-se. Arrumou a sua capa nas costas da cadeira e escreveu uma nota numa folha branca.

     - Podes regressar. Espero que estejamos esclarecidoseque não se volte a repetir.
     - Sim, senhora.
     - Vá. Leva este bilhete para o teu professor. Ele saberá o que fazer.

     Gaspar agarrou o papel e saiu do gabinete.

     Era hora de recreio e descanso. As crianças corriam de um lado para o outro. Risos e gargalhadas ecoavam pelos pátios da escola.

     - Que aconteceu, Gaspar? - perguntou Samuel.
     - Estou de castigo. Tenho que apresentar um trabalho até amanhã de manhã.
     - Porque foste à cantina?
     - Por nada. Pensei que podia encontrar alguma coisa - disse misteriosamente.
     - Alguma coisa? Achavas que ias encontrar o quê? Estiveram lá polícias e investigadores, o que quer que fosse que encontrasses não serviria de nada.

     Gaspar olhou para o vazio.

     - Tens razão. Que estupidez a minha.
     - Queres ajuda para o teu trabalho? - disponibilizou-se Samuel.
     - Não te preocupes , Sam, além do mais é o meu castigo.


- Tarde 10 de Janeiro -

     Gaspar almoçou sozinho na livraria da escola. Os livros e o cadernos estavam espalhados pela mesa. Ainda não tinha começado o trabalho de matemática que o professor lhe tinha imposto como castigo.

     A livraria estava deserta, à excepção da funcionária que tomava conta dele do balcão à entrada. Lá fora ouviam-se ainda as crianças no recreio.

     A campainha tocou. Em segundos toda a escola fez silêncio.

     Gaspar não conseguia concentrar-se. A todos os segundos lembrava a imagem da pobre rapariga desfigurada e queimada. Não lhe saía da cabeça. Nem a forma como ela não se tinha apercebido do acidente e da sua própria morte. Horas passaram.

     Gaspar levantou-se. Fingiu procurar um livro pelas prateleiras. Nesse momento lembrou o homem vestido de negro. "Quem seria ele?" - pensou. "Porquê dirigir-se apenas a mim? E como saberia ele o meu nome?" - Gaspar continuou a percorrer com a mão pelos livros mas sem lhes dar atenção. "De que segredo estaria ele a falar? Falou do meu segredo... E como saberia ele se eu nunca contei a ninguém?"

     - Gaspar?

     Ao ouvir o seu nome, despertou do seu pensamento. à entrada estava o professor.

     - Sim, professor.
     - Está quase na hora de voltar-mos para o orfanato.

     Desorganizadamente, arrumou os livros e o caderno na sua mochila. Gaspar continuou o seu pensamento a caminho do Orfanato. "Estaria ele a falar a sério sobre me vir buscar ao Orfanato?". A tarde estava a escurecer e Gaspar começava a sentir uma pequena ansiedade despertar.

     Ao chegarem ao Orfanato, Gaspar permaneceu só no seu quarto partilhado. Alguém bateu à porta.

     - Gaspar?
     - Sam...
     - Como correu o teu trabalho? - perguntou Samuel.
     - Nada de especial... - omitiu.

     Samuel deitou-se na sua cama e aconchegou-se.

     - Hoje estás um pouco estranho. Que se passa contigo?
     - Não sei. Deve ter sido do acidente de hoje...

     Samuel baixou os olhos em pensamento e, por fim, fechou-os.

     - Já vais dormir? - perguntou Gaspar ligando o computador.
     - Apenas fechar os olhos, estou cansado - sorriu.

     Gaspar olhou para o seu amigo. Esfregou uma vez os olhos. De seguida, esfregou novamente. Acalmou-se, sustendo a respiração, tentando perceber o que estava a acontecer.

     Samuel estava deitado na cama. Sobre ele pairava uma nuvem branca opaca e quase transparente. Ondulava ao ritmo de uma aragem suave apenas envolvida em torno do seu corpo. Gaspar olhava com admiração e interrogação.

     Apercebendo-se que Sam tinha adormecido rapidamente, Gaspar aproximou-se. Esticou a sua mão em direcção à nuvem. O seu gesto nada a afectou. Esfregou uma outra vez os olhos.

     Enquanto contemplava o seu amigo, a luz do seu quarto apagou-se, assim como o computador e o candeeiro. Gaspar espreitou pela janela e viu que toda a rua estava sem electricidade. Uma dor brusca e ácida soltou-se no seu peito.

     "Será ele?" - pensou.

Música ♫

Há uma música dentro de mim que ninguém consegue simplesmente ouvir.
Esta música, tento desesperadamente libertar sem nunca conseguir.
Procuro em mim os instrumentos que a compõem sem nunca os descobrir.

É uma música infinita paralela ao espaço que a cada segundo me dá um novo compasso. É um som de memórias e de novos momentos tocados em glórias por instrumentos lentos.

É engraçado como há pessoas transparentes e que a sua música paira como uma aura.
Mas é estranho ser-se uma pessoa que esconde a sua música numa jaula.
E outras, que apesar de terem músicas belas, não se conseguem libertar delas.

Quero apenas mostrar a minha música para todos. Quero fazê-lo simples e sem engodos.
Este, é o som da tranquilidade. Esta, é a fórmula humana para a cura. A mais simples criação da natureza diluída pelos sentidos. Esta, é a minha melodia pura.

Que perdura.

O efeito do defeito - Gaspar

Parte 5
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- Manhã 10 de Janeiro -


     A aula de matemática do primeiro turno estava a correr calmamente quando se deu uma explosão num edifício próximo. O alarme soou por todas as salas e corredores. Em segundos instalou-se o pânico.

     - De pé rapazes! Formem uma fila e deixem todos os vossos objectos na sala - alertou o professor enquanto caminhava para a porta - Vamos sair com calma e sem correr.

     Todos se levantaram e seguiram o professor.

     - Que terá acontecido? A sala estremeceu com o barulho! - perguntou o pequeno Jorge.
     - Parece ter vindo da cantina! - supôs o Duarte, convicto e assustado ao mesmo tempo.

     Pelo corredor, as outras turmas saíam em fila das suas salas e seguiam todos a mesma direcção. Por vezes ouviam-se alguns gritos de pânico entre as conversas stressantes sem fim.

     - Vamos todos em direcção ao pátio, pessoal, sem pressas nem empurrões - ordenou o professor de matemática.
     - O que aconteceu? - perguntou o Jorge incrédulo.

     O grande pátio em minutos se encheu de crianças de toda a instituição.

     - Ainda não sabemos ao certo. Esperem aqui - ordenou outra vez.

     Vários professores tentavam acalmar as crianças mais novas que choravam de medo. Dois funcionários traziam os ultimos rapazes que estavam a ter aula no ginásio, entre eles Gaspar e Samuel.

     - Sam! Gaspar! Estamos aqui! - gritou Jorge levantando os braços no ar.
     - Meu! Ouviste o estrondo?
     - Estavamos no ginásio ao pé da cantina quando sentimos a explusão! Estremeceu tudo! - explicou Samuel.
     - Eu disse que a explosão veio de lá! - afirmou Duarte.
     - Veio mesmo da cantina - concluíu Gaspar, olhando em sua volta para todas as crianças ocuparem o enorme pátio longe dos edifícios.
     - Que terá sido? - perguntou Jorge.
     - Fuga de gás, acho que é óbvio - respondeu um outro rapaz aproximando-se.
     - Raúl! Como estás? - cumprimentaram os rapazes.
     - É possivel, aquela cozinha estava a precisar de uns arranjos! - disse Jorge exaltado.

     Uma mulher com uma capa escura aproximou de todos carregando nas mãos um megafone. Era a directora da escola do orfanato. De seguida os professores pediram a todos os alunos para a ouvirem com atenção.

     - Bom dia crianças! - falou em voz alta e aumentada pelo aparelho - Um incidente ocorreu há pouco na cantina. Os bombeiros estão no seu caminho para aqui e tudo será resolvido. Felizmente ninguém estava na cantina no momento da explusão. Supomos que tenha sido uma fuga de gás que tenha causado a explosão. Peço a todos vocês que mantenham a calma e que permaneçam aqui até os bombeiros chegarem e resolverem o problema.

     Logo após, ouviram-se as sirenes e de imediato uma equipa de bombeiros correu com os seus equipamentos para o local.

     - Gaspar! - gritou Sam, apontando para o edifício da cantina.

     Um fumo negro elevava-se no céu vindo das janelas das cozinhas. O camião vermelho, entre várias manobras, aproximou-se do edifício e os bombeiros interviram em segundos com as mangueira de água.

     Passaram duas horas até o fumo ter desaparecido e a cantina ser livre de perigo. Poucos minutos a seguir a polícia chegou para investigar. Depois de uma longa explicação da directora, todas as crianças e professores retomaram as salas e continuaram com as aulas. Samuel, Gaspar, Duarte, Jorge e Raúl decidiram aproximarem-se da cantina para observarem de perto e matar a curiosidade.

     - Olha como está tudo queimado e destruído! - surpreendeu-se Jorge.
     - Olhem, são investigadores! - apontou Samuel.

     Gaspar sentiu-se nervoso e ansioso, não parava de olhar em sua volta.

     - O que estão aqui a fazer, rapazes? Não podem estar aqui! - perguntou o funcionário do ginásio.
     - Viemos só buscar as mochilas e os equipamentos de ginástica, senhor Gustávo - respondeu habilmente Samuel.
     - Rápido, então, e voltem para as aulas!

     Na sala de aula, as conversas eram repetitivas e acabavam todas no mesmo tema: a explusão na cantina. Muitos dos rapazes sentiam receio. Outros preocupavam-se com o almoço. Mas Gaspar parecia desligado do acontecimento.

     - Porque terá vindo aqui a polícia? - perguntou Duarte, virando-se para trás.
     - Não faço ideia... Meu, estás bem? - perguntou Samuel tocando no braço de Gaspar - pareces cansado ou enjoado.
     - Não sei, deve ter sido do susto - respondeu, escorregando um sorriso - Acho que preciso de apanhar ar.

     Com autorização do professor, Gaspar saiu da sala, sozinho.

     Ao entrar na casa de banho lavou a cara e sentou-se a pensar. Ao sair, espreitou pela porta. Não havendo ninguém nos corredores caminhou ligeiramente até sair do edifício. Deu a volta pela traseira para não ser visto e correu em direcção à cantina. Apenas o senhor Gustávo rondava o local. Nada que dificultasse a entrada na cantina, mesmo assim Gaspar estava atento e agia com cuidado.

     A dada altura, o senhor Gostavo afastou-se o suficiente para que Gaspar podesse atravessar o pátio e entrar pelas traseiras. Correu sem abrandar no momento certo até chegar à lateral oposta. Espreitou por uma janela com os vidros quebrados e aproximou-se...

     - "Hei! Quem és tu?" - gritou em dor uma voz vinda do interior dos destroços.

     Gaspar aterrorizou-se. Afastou-se da janela e sentou-se no chão.

     - "Tu vês-me?" - continuou - "Nenhum daqueles polícias me viu, mas tu sim! Eu vi como me olhaste nos olhos!"

     Gaspar paralizou de cabeça encostada na parede e olhos fechados durante segundos. No entanto, parou para pensar que não reconhecia a rapariga do orfanato. Respondeu naturalmente.

     - Sim...
     - "Tenho tanto medo!" - a voz estremecia e parecia chorar - "Não consigo ver o meu corpo!"

     Gaspar ouviu o choro agoniado da rapariga do outro lado da parede.

     - Quem és tu e o que te passou pela cabeça para teres estado na cantina? - perguntou.
     - "Não sei... Não sei!"

     Para Gaspar, o choro que ouvia parecia tornar-se mais físico que psicológico, como uma dor real.

     Num piscar de olhos, Gaspar apercebeu-se que estava sozinho.

     - Hei! Não podes estar aqui! - gritou o funcionário - Não devias estar nas aulas?

     Gaspar levantou-se mas não respondeu.

     - Rapaz, não podes estar aqui, foste avisado! Anda, tenho que te levar ao conselho.

     Gaspar esperava no banco de espera à porta do escritório da directora. Apenas pensava na rapariga desconhecida e no que havia acontecido que nem tinha reflectido no que estaria ele ali à espera. Entretanto uma secretária trazia uma mensagem.

     - Gaspar? - perguntou a mulher.
     - Sim?
     - Está lá embaixo uma pessoa que precisa falar contigo. Eu aviso a directora.

     Gaspar desceu até ao portão de saída, controlado por um funcionário guarda. Do outro lado do portão esperava um homem alto e moreno. Vestido completamente de negro.

     - Olá Gaspar - cumprimentou gentilmente.
     - Como sabe o meu nome?
     - Isso não importa agora. O que importa é que eu sei que tu queres sair daqui.

     Gaspar olhou-o com mais atenção, mas desconfiando mais ainda.

     - Eu sei que tens um segredo e quero ajudar-te. Não tens que me responder. Apenas ouve-me.
     - Quem é o senhor? - perguntou indignado numa voz grossa para a sua idade.
     - Um amigo. Um amigo que já ajudou alguém a sair do mesmo orfanato que o teu.

     Gaspar negou com a cabeça sem desviar o olhar.

     - Gaspar, esta noite, a energia eléctrica do orfanato para o qual regressam todos os dias será desligada. Será tua a decisão de ficares ou fugires. Aquilo que sempre quiseste mas nunca conseguiste sozinho.
     - Como sabe isso tudo? Nem o conheço!
     - Conhecerás. E muitos outros como tu - afastando-se do portão, desviou o olhar para o guarda - O meu nome é Raphael. Ficarei à tua espera.

     Gaspar permaneceu no portão, vendo o homem misterioso partindo.
 

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