Rafael Braga

O efeito do defeito - Gabriela

Parte 7
_____________________________________________________________________________________

- Tarde 10 de Janeiro -

     - Não posso acreditar... - disse Gabriela em voz baixa e desacreditada - Estou a ouvir música!

     Soraia, como sua amiga há alguns anos, sabia que Gabriela era incapaz de ouvir além dos pensamentos transmitidos em voz pelas pessoas, nunca músicas ou sons externos.

     - "Tens mesmo a certeza?" - pensou para Gabriela.
     - Sim!
     - "Não.. ouço música nenhuma..." - pensou Soraia apenas para si concentrando-se no interior do café.

     Gabriela então compreendeu. Não estava a ouvir música de aparelho algum como desejava, não estava a ouvir pelos seus próprios ouvidos... Sentiu-se decepcionada. Continuava a ouvir a música

     - Quero sair daqui - disse Gabriela
     - "Então... e o lanche...?"
     - Não quero...

     Ambas levantaram-se e sairam do interior do café. Nem pararam para se despedirem de Vasco. Enquanto passavam pelo recinto da esplanada, Soraia voltou sem explicação ao café.

     Gabriela parou. A música era mais nítida. Olhou em seu redor. Nada fazia sentido.

     "Não faz sentido. De onde virá? De alguma pessoa?", pensou Gabriela, que continuava a concentrar-se na fonte da música. Até certa altura, de entre a melodia, uma voz falou calmamente.

     - "Uma altura, o pai contou-me um segredo..."

     Gabriela detectou, instintivamente, o rapaz que se encontrava na esplanada a alguns metros de si. A sua voz era clara e fluente, sem interrupções de vários pensamentos simultâneos, ao contrário de todas as outras pessoas. Olhou o rapaz e continuou a "escutar".

     - ...contou-me um segredo, que ele tinha um dom parecido com o meu. E que uma maneira que ele tinha de o fazer parar ou abrandar era bebendo..."

     Soraia regressou do café e aproximou-se. Tocou no seu braço em sinal de prontidão.

     - "Esqueci-me... do telemóvel... vamos?" - disse Soraia.

     Gabriela permanecia concentrada.

     - "Ainda ouves... a música?" - pensou olhando para ela.
     - Melhor que isso. Sei agora de onde ela vem - respondeu aproximando-se do rapaz acompanhado.
     - "Onde vais?" - perguntou a amiga.

     Gabriela parou por instantes na direcção dele. Algumas vozes da mulher que o acompanhava não eram tão distintas, sobretudo, porque a voz do rapaz era também mais apelativa.

     - "Sim, lembro. Primeiro foi a aprendizagem demasiado rápida para a minha idade devido à memória fotográfica. As alucinações mais tarde. E agora isto da reprodução mental..."

     Gabriela arregalou os olhos. A mulher que acompanhava o rapaz pressentiu a sua presença e voltou-se para ela. Agindo naturalmente, desviou o olhar deles e voltou para trás para perto de Soraia.

     - "Que te deu?" - perguntou.
     - Não vais acreditar...
     - "Em quê?"
     - Era aquele rapaz...
     - "Que tinha... ele?... é giro..." - disse Soraia espreitando pelo ombro da amiga.
     - A música, Soraia, vem dele.
     - "Como assim?... Da cabeça dele... também?"
     - Sim!

     Gabriela e Soraia afastaram-se da esplanada. Seguiram pela praça até ao outro lado da rua que os separava e permaneceram ali, podendo ainda observar o rapaz de longe.

     - "Porque... não foste falar... com ele?"
     - Está acompanhado pela mãe que é médica.
     - "Mãe? ...como sabes?... esquece... Eu teria... falado com ele..."

     Gabriela revirou os olhos.

     - "Porque... será... ou como ele faz... isso?"
     - Não sei...

     Gabriela não pensou em possibilidades. Apenas um pensamento sobressaía no assunto: alguém mais também possuía algo em comum como ela. Diferente mas comum. Por isso, só haveria uma coisa a fazer.

     - Tenho que o conhecer para falar com ele.
     - "Gostaste dele..." - pensou Soraia, sorrindo.

     Gabriela sentiu o mesmo. Fascinou-a.

O efeito do defeito - Maria

Parte 7
_____________________________________________________________________________________

- Tarde 10 de Janeiro -


     - E o que a mãe iria pensar de ti, Carolina? - perguntou Maria tocando a irmã.

     Carolina fez uma pausa com os olhos postos na almofada.

     - Eu sei que ainda não entendes, mas um dia irás, que existem pessoas que por vezes não compreendem as situações diferentes pelas quais não estão a passar.

     Maria lembrou Mateus. Da misteriosidade dele em particular.

     Carolina abraçou-se à sua irmã.

     - Percebes? Não podes mostrar às pessoas que és mais forte que elas. Porque elas não o são e por isso vão te fazer sentir diferente. Muitas delas troçam e só querem o mal da inveja. Eu sei que a mãe não é assim, mas, mais cedo ou mais tarde tu irias contar a todos os amigos da escola e foi melhor assim.
     - Então para que tive tanta força de manhã? - perguntou a pequena, triste.

     Maria encolheu os ombros e expressou-se com uma interrogação. "Porque haveria de ter tido a mesma força que eu de manhã e agora não?" - questionou-se - "E de onde viria? E de onde vem a minha? Como é possível? Devo experimentar se ainda... e também tenho força?".

     - Sim? - perguntou Carolina.

     Maria tinha-se distraído com os seus pensamentos.

     - Não percebi, mana.
     - Quero sair e passear - repetiu Carolina.

     Maria pensou e sorriu.

     - Vamos então até ao parque. Combinado?

     Carolina levantou-se da cama e puxou pela mão da irmã. Ambas desceram as escadas até à sala de estar. Sentado, Bernardo lia o jornal descontraído, de perna cruzada e casaco pendurado nas costas do sofá. Preocupada, a mãe apareceu vinda da cozinha.

     - Que passou, filha? - perguntou a mãe.
     - Nada, mãe. Ela só quer ir passear um pouco - disse Maria.
     - Querem que o Bernardo vos leve?

     Sem hesitação alguma, Carolina apertou a mão de Maria.

     - Não é necessário, mãe - respondeu Maria.

     Sairam de casa e seguiram a pé até ao centro da cidade. Pelo caminho conversaram.

     - Porque é que o pai não está mais connosco? - perguntou Carolina.

     Maria tentou ignorar ao princípio.

     - Teve que ir embora... - respondeu.
     - Sim, mas porquê?
     - Porque a mãe já não gostava dele e tinham muitos problemas juntos.

     Maria desviou o olhar. Carolina continuou a olhar em frente a pensar. A rua inclinava numa subida íngreme. No final, havia um cruzamento. Viraram à esquerda e desceram para o centro. O parque estava perto.

     - Eu gostava mais do pai - disse a pequena.

     "Eu também.", pensou Maria - "Mas ele tinha mudado tanto..."

     - Achas que o voltaremos a ver? - perguntou Carolina.
     - Um dia, talvez - respondeu Maria encolhendo os ombros.
     - Ainda gosta de nós?

     Maria voltou-se para a irmã e sorriu.

     - Sim, ainda gosta de nós. É o nosso pai.
     - É que eu não gosto do Bernardo, faz-me ter medo.
     - A mim também. É duro, mas não é má pessoa.
     - Porque é que a mãe o levou para casa? - perguntou a pequena.
     - Foi a decisão dela. Não queria tomar conta de nós sozinha.
     - Podia ter encontrado alguém mais simpático...

     Maria sorriu. O parque ficava ao fundo da avenida e bastava-lhes atravessar a rua. Nesse momento um automóvel preto estacionou à frente de ambas, assustando-as.

     - Mais cuidado! - gritou Maria.

     O condutor saíu do carro calmamente. Olhou-as e inclinou-se.

     - Peço imensa desculpa por vos ter assustado, não era a minha intenção - disse gentilmente.

     Carolina observou com atenção o homem alto e vestido de negro e sorriu para ele. Em resposta, o homem acenou-lhe com a mão.

     - Dá-me a mão. Vamos - pediu Maria, entrando pelo parque.
     - Acho que conheço aquele senhor... - disse Carolina olhando ainda para trás.
     - Sim? De onde?
     - Do Hospital - disse sorrindo.

     Continuaram a passear pelo parque. Lancharam juntas num café e sentaram-se nos bancos do jardim a comer gelados. O dia estava calmo e suave.

     - Tiveste muito medo no Hospital? - perguntou Maria.
     - Não. A enfermeira era simpática e estava sempre comigo - riu.

     Maria observou-a. Pensou para si própria como a sua irmã crescia. E como o tempo passava.

     - Ela disse que eu fui atropelada por um carro, mas eu não lembro.
     - É normal - confortou Maria acariciando o rosto da irmã.
     - Ela também disse que sou muito forte - pausou e continuou - Será que ela sabia?
     - Ela não se estava a referir a essa força, mas sim à da vontade. Quis dizer que és forte por dentro - Maria piscou o olho.
     - Tu também és muito forte, mana - disse a pequena.

     Ambas terminaram o gelado e levantaram-se dos bancos. De volta, pelo mesmo caminho, Maria distraíu-se enquanto que um rapaz cheio de roupa e de pressa embateu sem querer nelas. As roupas espalharam-se pelo chão. Umas chaves de automóvel caíram sobre os pés de Carolina.

     - Peço imensa desculpa - disse Maria.
     - Não... faz mal - balbuciou ele.

     Carolina agachou-se e apanhou as chaves. Aproximou-se do rapaz e entregou-lhe-as. Maria sorriu para sua irmã e olhou para o rapaz.

     - Obrigado... - agradeceu ele.

     Sem explicação alguma, o rapaz agarrou as suas roupas violentamente e desapareceu a correr pelo caminho em segundos.

     "Que estranho.", pensou Maria.

     - O que tinha ele, mana? - perguntou Carolina.
     - Pressa, muita pressa - disse - Vamos para casa.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 6
_____________________________________________________________________________________

- Tarde 10 Janeiro -

     Gonçalo ligou o motor do carro e arrancou. Seguiu a estrada até uma rua menos trafegada. Ali, parou o carro e desligou-o. Os prédios altos de cada lado daquela rua estreita sombreavam o carro como se fosse o início da noite adiantada. Trocou as suas roupas velhas e vestiu as novas que havia roubado na loja há alguns minutos atrás.

     Enquanto se vestia pensava na menina. Não queria acreditar, a menina com que havia embatido despropositadamente no parque era a mesma menina que havia atropelado há cinco meses atrás, na noite a seguir que havia fugido do Hospital.

     O seu lado sensível sentia-se aliviado pela menina se encontrar bem de saúde e por nada de pior lhe ter acontecido depois do acidente. Enquanto que o outro lado, o lado de culpa, fazia-o repugnar a si mesmo pelo sucedido. Nunca se iria perdoar pelo que havia feito naquela noite remota.

     Olhou-se ao espelho e com a manga da camisola suja, limpou o sangue da cara. Olhou o vazio e esperou. Saiu do carro e abriu a bagageira da traseira. Havia uma mochila como Raphael lhe havia dito. Dentro da mochila havia uma tesoura de arame e uma lanterna, nada mais. Fechou a mala e voltou para o interior. Abriu o porta-luvas e agarrou um pequeno mapa com uma nota escrita: a morada onde deveria se encontrar nessa noite.

     Gonçalo ligou o carro.

     "Preciso de procurar agora a morada para chegar a horas.", reflectiu. A morada na nota não ficava muito longe de onde estava. Seguiu caminho para lá.

     Parado num semáforo, o rádio tocava uma música. Gonçalo olhava para todos os lados, em particular, por receio. Nesse mesmo momento, os sinais dos peões piscavam e uma mulher atravessou-se em frente nos últimos segundos. Gonçalo reconheceu-a.

     "A mãe do Mateus...", uma súbita adrenalina picou-lhe o peito.

     Célia, que saía do seu turno do Hospital, passou a correr na passadeira olhando de seguida para trás para o carro e reconhecendo-o por breves instantes.

     Gonçalo apercebeu-se que a mãe do seu amigo o havia avistado e aproximava-se do carro. Sem hesitação acelerou... Enquanto fugia, o medo apoderava-se dele, desabilitando-lhe os pensamentos e as decisões.

     Minutos depois, Gonçalo desligou o carro ao chegar à morada descrita. Olhou em seu redor. Haviam algumas casas, uns quantos cafés até ao fundo da rua comprida e um orfanato. Estava a entardecer. Voltou a entrar no carro e estacionou-o legalmente perto do orfanato. Faltavam algumas horas até à hora prevista, por isso permaneceu no carro, para descansar um pouco e pensar.

     Muitos medos passavam pela sua cabeça. Ter visto a mãe de Mateus ainda lhe trouxe mais tormento. "Como haverei de me encontrar com o Mateus?", interrogou-se, "Como lhe vou contar tudo o que aconteceu? Como reagirá ele?"... Gonçalo se encostou no banco.

     ...

     Algumas horas haviam passado. Nas suas linhas de ideias e pensamentos misturadas com a música do rádio, Gonçalo quase adormecera, se não fosse por lhe terem batido na janela do carro.

     A noite já se tinha envolvido e as luzes da rua estavam todas ligadas. Gonçalo ficou surpreso, Fábio esperava-o fora do carro. Os dois abraçaram-se.

     - Que estás aqui a fazer? - perguntou Gonçalo, sentido de felicidade.
     - Vim ter contigo, meu! Estava com saudades tuas!
     - Mas, como me encontraste?
     - Uma pessoa que sabe encontrar pessoas veio ter comigo e indicou-me o caminho - respondeu Fábio.

     "Raphael", pensou Gonçalo.

     - E o MD e os rufias do Porto? Como te livraste deles? - perguntou Gonçalo preocupado.
     - Oh, meu, tiveram a sua sorte na mesma noite em que vieste para cá.
     - Como assim? - Gonçalo ficou curioso.
     - Foram todos apanhados! Não sei como ou porquê, mas foram. Alguém os chibou e prepararam-lhe uma armadilha - Fábio riu, batendo com o punho no ombro de Gonçalo.
     - Há duas noites atrás?
     - Sim - respondeu o amigo.
     - Nem vais acreditar! Na noite em que vim para Braga, fui cercado por eles! - contou Gonçalo - Devias ter visto a cara deles quando me viram ainda vivo! Mas acho que não me ia safar daquela. Foi então que ouvimos um tiro que chamou a atenção da bófia. E todos fugiram.

     Fábio esboçou um sorriso de convencido e lembrou-lhe.

     - Lembras-te aquela arma que encontramos e que só tinha uma bala?
     - Nããão! - admirou-se Gonçalo - Foste tu quem disparou?
     - Tive que te seguir para saber se chegavas bem. Que seria de ti sem mim, meu?

     Os dois riram e cumprimentaram-se. Continuaram a conversar por breves minutos.

     - Conta-me, o que te pediu ele?
     - O Raphael? Que me encontrasse contigo, nada mais.
     - Esta rua não parece ter nada de especial.

     Ao fundo da rua, um homem aproximava-se.

     - Raphael? - questionou Gonçalo - Estamos aqui. E agora?
     - Olá rapazes.

     Raphael, sempre misterioso, abriu a mala do carro. Agarrou a mochila e colocou-a sobre o ombro.

     - Vamos apagar umas luzes.

O efeito do defeito - Maria

Parte 5
_____________________________________________________________________________________

- Manhã 10 de Janeiro -

     - Bom dia, mana - cumprimentou Carolina ao seu lado - Queres ver uma coisa?

     Maria, resistindo ao sono, olhou-a com curiosidade. Carolina contornou a cama até ao fundo dos pés. Agarrou com as duas mãos por debaixo e elevou a cama a cinquenta centímetros do chão durante alguns segundos. Maria segurou-se surpresa.

     - Como fizeste isso? - perguntou perplexa, levantando-se da cama e segurando os braços da pequena.
     - Não sei. Mas sou forte agora - disse alegre.

     Maria não queria a acreditar no que acabara de assistir. Diversas perguntas passaram-lhe pela cabeça, algumas ainda mais confusas que as anteriores. A preocupação foi a primeira a manifestar-se.

     - Não contes nada aos pais. Prometido?
     - Porquê? - perguntou Carolina contente e desejada de o fazer a toda a gente, como uma nova brincadeira.
     - Vou contar-te um segredo. Eu também tenho muita força como tu. Por isso não podemos contar nada a ninguém. Prometes?

     Carolina baixou os olhos de alguma decepção. Maria abraçou-a, preocupada.

     - Prometes? - perguntou, sorrindo.
     - Sim - prometeu, pensando na sua irmã - Mas porque não podemos contar nem ao pais?

     Maria levantou-se. Sabia que "empatar" não seria uma solução infinita mas teria que servir até encontrar respostas às suas próprias perguntas.

     - Porque eles ainda andam zangados um com o outro - disse - e se souberem disto, vão ficar muito mais preocupados e com medo que alguma coisa possa acontecer.
     - Porque eu posso me magoar, não é?
     - Exacto, entendes? - sorriu de alívio.

     Carolina baixou os olhos.

     - A culpa foi minha... - murmurou.
     - Oh meu anjo... Porquê? - perguntou Maria, sentindo pena pela expressão da sua irmã.
     - Se eu não tivesse fugido de casa, eles não tinham discutido ainda mais. E não me tinha acontecido nada...

     Maria ajoelhou-se novamente frente à sua irmã.

     - Não tiveste culpa. Eu mesma tinha fugido. E o acidente não foi culpa tua também.
     - Tenho medo dele...

     Maria abraçou-a.

     - Não digas isso. Vai tudo correr bem. A mãe veio te dar um beijo de "boa noite" quando adormeceste ontem. Ela gosta muito de ti. E sei que ele também.
     - Então porque discutem por minha causa?
     - Porque são adultos, Carolina - Maria sorriu e Carolina achou um pouco de graça - Mas eles adoram-te e querem tudo de bom para ti, mesmo que não pareça assim. Quando cresceres irás perceber melhor.

     Carolina esboçou um sorriso de anjo, com o seu cabelo longo e loiro a brilhar como uma aura. Esticou os braços a pedir um abraço e Maria agarrou-a novamente.

     - Tanta forçaaa! Ai! - gritou alegre, mas séria quanto à força.

     Carolina riu e correu pela casa.

     Preparam e tomaram o pequeno-almoço juntas. De seguida tomaram duche e vestiram-se. O dia estava brilhante e alegre. Aproveitanto um momento sozinha,Carolina dirigiu-se à sala e agarrou o sofá, levantou-o de um lado o suficiente para se pôr debaixo dele, pousando-o novamente. Enquanto isso, Maria, lembrou o mais absurdo. Há cinco meses atrás, ela mesma havia revirado um automóvel. Não fazia a mínima ideia de como o tinha feito. Mas aconteceu e apartir desse dia nunca mais voltou a experimentar a mesma força e desespero. Maria só tinha que esperar que nada de mal acontecesse com a sua irmã Carolina.

     "Que posso eu fazer?", pensou. Quem poderia ajudar duas raparigas que não sabiam o que tinham e o que tinham era fora do comum e, quem sabe, muito perigoso. Maria continuava a pensar...

     Pela janela, Carolina viu os pais chegarem de carro pela rua.

     - Mana, chegaram!
     - Vamos esperar por eles na porta, rápido.

     As duas correram e riram até à porta da entrada.

     - Bom dia! - gritou Carolina correndo pelo jardim de flores brancas.

     A mãe abraçou-a de entusiamo a fugir-lhe pela garganta enquanto chamava por ela, a cumprimentava e lhe dava as boas vindas a casa. Pediu mil desculpas por não a poder ter ido buscar ao Hospital. A alguns metros de distância, o padastro da menina permaneceu sereno e imóvel, vestido de fato cinzento e sapatos clássicos mas velhos, assistindo sem qualquer sinal de emoção no seu rosto enrugado.

     Maria observou-o de canto e apercebeu-se. Não era algo fora do vulgar. Ele fora sempre muito reservado e misterioso. Aproximou-se da mãe e da Carolina. Todas entraram na casa e sentaram-se a conversar, excepto o padastro, que permaneceu na rua a fumar. Maria repetiu os conselhos do médico para a mãe.

     - O médico explicou que a fisioterapia estava terminada, a Carolina estava cem por cento recuperada. Não receitou nada. Apenas que deveria praticar algum desporto ou exercícios...

     Carolina ouvia com atenção, mas algo novo e imenso nos seus olhos queria soltar-se e mostrar-se pelos cantos da casa. Uma ideia nova ou um pensamento. Um segredo. Segurava a mão da sua mãe. Chamava constantemente por ela quando não lhe dirigia a atenção, por falar com Maria sobre as condições que o médico havia proposto para a recuperação final de Carolina. Maria estava a aperceber-se o quanto Carolina se estava a entusiasmar com a presença da mãe.

     - Mãe, mãe! - chamava Carolina.
     - Sim, Carolina, o que se passa?
     - Quero mostrar-te uma coisa nova - informou cantarolando.

     Maria lançou um olhar sério a Carolina, mas esta não lhe retribuiu um olhar.

     - Ai sim? E o que é? - perguntou a mãe, seguindo a brincadeira.

     Em voz baixa falou.

     - Mas o Bernardo, o pai, não pode saber, prometes?

     Maria levantou-se de imediato.

     - Carolina, não!
     - Hoje levantei a cama da mana no ar, sozinha - concluíu, ignorando Maria.
     - Que parvoíce, filha - riu a mãe.
     - Então eu mostro - apressada, a menina correu em volta e agarrou-se ao mesmo sofá.

     Maria assistiu sem reacção. Carolina esforçou-se mas o sofá nem sem moveu um centímetro.

     - Filha, não faças isso - falou a mãe.

     O rosto de Carolina entristeceu de confusão. Não compreendia como não conseguia repetir a mesma proeza. Enquanto isso, Maria também estava confusa. Mas de certa forma, aliviada pela mãe ter entendido como uma brincadeira.

     Carolina tentou uma segunda vez. De novo, o sofá pesava-lhe toneladas. Birrou e fugiu para o seu quarto. Maria seguiu-a.

     - Já não sou forte... Queria que a mãe visse... - soluçou a pequena.

     Maria deitou-se do seu lado. Não percebia o que havia acontecido. Era inexplicável. Entre tantas questões, Maria decidiu experimentar se ainda conseguia ter a mesma força que nunca mais usou.

Longe de casa

Era noite e a lua já tinha mergulhado no horizonte.
O orvalho caía tão suavemente que pairava sobre a areia húmida.
Havia uma única luz ao nosso lado, o resto era escuridão.
A água salgada rugia lá do fundo.
Contei estrelas. Procurei nelas desenhos. Apontei. Rimos.
Estavamos no meio do nada mas senti que havia tudo à nossa volta.

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 5
_____________________________________________________________________________________

- Tarde 10 de Janeiro -

     Meio dia havia passado. Gonçalo adormecera depois da noite em branco. As últimas noites não estavam a ser agradáveis e dormir o necessário tornava-se um castigo. Gonçalo sentia a falta das noites em branco na companhia do seu companheiro de rua, Fábio.

     Acordou. O seu corpo parecia anestesiado.

     O ambiente no quarto do motel era quente e abafado, um ar seco e um pouco poeirento, reluzente por entre as faixas de claridade vindas do exterior através da janela semi-aberta. As decorações pobres e baratas tornavam o quarto esquecido e desabitado por décadas.

     Gonçalo levantou-se. O quarto de banho ao lado da divisão era pequeno e pouco higiénico. Enxaguou as mãos e lavou a cara. Voltou ao quarto e retirou o saco com o dinheiro debaixo do colchão. Levantou o seu casaco preto no ar, voltou-se para a luz e esta trespassou o tecido desgastado e rasgado.

     Desceu pelas escadas até ao balcão de entrada e entregou a sua chave. Pagou a estadia no mesmo acto. O senhorio, com cara de poucos amigos e desfigurada de um dos lados, guardou o dinheiro como um mendigo esconde o seu último pedaço de pão.

     Nas ruas, Gonçalo deparou-se comuma loja fora do centro das atenções. Entrou e logo observou a disposição dos corredores e das câmaras de vigilância. Escolheu um novo casaco, semelhante ao seu. Agarrou aleatoriamente num par de calças e de seguida roupa interior. Dirigiu-se imediatamente pelo balcão e saiu da loja sem dar nas vistas, mantendo um ar de naturalidade.

     - Gonçalo...? - chamou-o.

     Não queria acreditar na voz, surpreendeu-lhe a lembrança. Por isso, voltou-se sem hesitar.

     À sua frente, a imagem famíliar vestida de negro surpreendeu-lhe a vista.

     - Raphael! - respondeu-lhe Gonçalo com um sorriso nos lábios.
     - Sim. Como prometido, aqui estou eu.
     - Porque levou tanto tempo?! - perguntou num tom despercebido de revolta.

     Gonçalo abraçou-o sem receber uma resposta.

     - Gonçalo, porque roubaste esta roupa se tens dinheiro contigo?

     Gonçalo envergonhou-se de olhos postos no chão. O homem de negro colocou-lhe uma mão sobre o ombro e direcionou-o pela rua. Os dois começaram a caminhar.

     - Veio para me mostrar o que aconteceu realmente com a minha família? - perguntou Gonçalo, esperando uma resposta clara e directa.
     - Tudo a seu tempo, Gonçalo - disse Raphael misteriosamente.

     Gonçalo parou e Raphael deu mais dois passos, voltando-se depois para ele.

     - Contudo, preciso da tua ajuda.
     - Da minha ajuda? - perguntou Gonçalo, curioso e ao mesmo tempo impaciente.
     - Sim - pausou - há um rapaz muito especial com quem te deves encontrar com ele esta noite - disse, entregando para Gonçalo uma chave de um automóvel.
     - Como assim, especial? Como eu?
     - Sim. Mas... - e sorrindo - diferente. É ele quem te vai ajudar a descobrir. Eu sei que vai. E preciso que nos vás buscar.
     - Não estou a compreender.

     Os dois continuaram a falar e a caminhar pela rua até ao parque do centro.

     - Está ali ao fundo, à entrada deste parque. É um carro preto e tem uma mochila na bagageira que precisarás dela mais tarde. A morada e a hora está no porta-luvas.
     - Mas...
     - Tudo a seu tempo, Gonçalo. Preciso que confies em mim. Eu prometi-te e estou a cumprir. Com o tempo compreenderás.

     Raphael afastou-se.

     - Tanto como tu, eu também quero descobrir a verdade.

     Gonçalo permaneceu no parque, com as roupas nos seus braços, vendo o homem partir.

     Quando veio a si, apressou-se em direcção ao carro. Distraído, embateu com duas raparigas. As roupas caíram sobre o chão, assim como as chaves do automóvel.

     - Peço imensa desculpa - disse uma das raparigas.
     - Não... faz mal - balbuciou enquanto se organizava.

     Enquanto pegava nas suas roupas, a menina mais nova deu-lhe para a mão a chave.

     - Obrigado... - agradeceu. Olhando para a menina, Gonçalo petrificou. O ambiente do parque tornou-se silêncioso e sufocante. Agarrou as suas roupas num acto abrutalhado e correu sem explicação.

     Entrou no carro e atirou as suas roupas para os bancos de trás. Esfregou a cara com as duas mãos como se algo lhe estivesse a agarrar. Gonçalo estava a experienciar medo e, sobretudo, culpa... Após o ter feito com tanta força e sem se aperceber, uma linha de sangue escorria-lhe por um lado da cara. Tinha-se arranhado com as próprias mãos.

     "Não posso crer...", pensou para si, "Como pode isto acontecer...?"

     Gonçalo tremia das mãos. Nem nas chaves conseguia segurar. Reencostou-se no banco e tentou relaxar. "Como pude ter feito uma coisa daquelas e fugir..." O seu mundo estava a virar do avesso e a tornar-se cada vez mais pesado. Sentia a adrenalina correr-lhe pelo corpo, fazendo tremer ainda mais.

     Olhou pelo retrovisor e observou o seu reflexo nele. A ferida sarou-se em segundos, mas o sangue secou na sua cara. A sua expressão era de revolta.
 

Seguidores