Rafael Braga

O efeito do defeito - Mateus

Parte 6
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- Tarde 10 de Janeiro -


     A caminho do café, para se encontrar com a sua mãe, como combinado, Mateus parou em frente a uma livraria. Na montra, olhando, viu um livro que lhe chamou a atenção. Um livro que havia lido por último.

     Sorriu. Era um bom livro.

     Ao chegar ao café, acenou ao funcionário de mesa e sentou-se no exterior, na esplanada. Mateus confortou-se na cadeira sem reparar em nada ou ninguém. Inspirou pela boca como quem queria soltar um grito, mas conteu e expirou calmamente.

     A sua mãe ainda não havia chegado. Sozinho, relembrou e ouviu música como se revivesse um momento em lembranças.

     Vários minutos se passaram.

     - Como estás filho? - perguntou a mãe ao chegar perto dele.

     Mateus estava distraído. Célia sentou-se ao seu lado e tocou-lhe no braço.

     - Ah! Olá, mãe... Estou melhor... - respondeu modestamente.

     Célia tirou o seu casaco e pendurou-o sobre a cadeira do lado. Pousou a sua mala no chão ao lado dos seus pés e retirou os óculos. Observou e Mateus continuava distraído e dividido no espaço.

     - Conta-me o que se passou ontem no parque de estacionamento... - pediu gentilmente a mãe.

     Mateus não respondeu. Célia fechou os olhos.

     - Eu sei que ontem não deveria ter saído para um outro turno, mas eles precisavam muito de mim...
     - Eu sei, compreendo...
     - Mas agora estou aqui. E quero saber o que te está a acontecer desta vez.

     Mateus olhou-a de relance.

     - Como mãe, é claro... - afirmou Célia.
     - Não sei - respondeu Mateus - Tu mesma me disseste que seria muito improvável ele ter saído do hospital no estado de saúde em que estava. Mas já passaram cinco meses e o Gonçalo...
     - Eu já te tinha contado! - interrompeu ela - O Gonçalo foi transferido para fora do país, filho, para cuidados intensivos. E teremos que esperar que ele regresse... - Célia fechou os olhos novamente por um momento, pensando para si própria. Engoliu em seco e continuou - Eu sei o quanto tu queres vê-lo, mas não tem até agora permissão para ser visitado...
     - Não faz sentido!

     Célia não olhou Mateus nos olhos.

     - Eu sei que não. Mas são as normas lá, diferente das nossas normas cá.

     Mateus encolheu-se na sua cadeira.

     - Hoje mesmo ligarei para ser actualizada e saber mais pormenores sobre ele. Já passaram cinco meses sim. Creio que possa ter melhorado muito... - Novamente, Célia desviou o olhar do seu filho enquanto contava o que também parecia não ser credível para ela própria.

     - Porque teve ele que ir sem nos podermos despedir dele?
     - Na altura foi uma emergência. Já falamos sobre isto, melhor que eu tu lembras-te disso.

     Mateus recompôs-se.

     - Eu sei... É que aconteceu tudo de uma vez só!

     Entretanto, o funcionário de mesa aproximou-se.

     - Vão desejar algo?
     - Estamos a aguardar um pouco. Obrigado - sorriu Célia.
     - Com licença, então - respondeu o funcionário.

     Passaram dois minutos de silêncio.

     - Temos tanto para falar, Mateus.
     - Eu sei... - retribuiu ele.

     Célia corrigiu a posição da sua cadeira e aproximou-se de Mateus.

     - Como foi lidar com a rapariga real dos teus delírios?
     - Diferente... - respondeu. Pausou para pensar - Foi tão estranho, sabes... Não é a mesma rapariga com que imaginei quase este tempo todo. E eu tenho noção de que não é...
     - A rapariga da tua imaginação pode ter a mesma aparência que esta rapariga chamada Maria, mas a sua personalidade não é...
     - Nem a sua voz...
     - Exactamente. Tu conviveste com uma imaginação, uma criação tua. Nunca poderia ter as mesma qualidades e personalidade que a verdadeira.
     - Eu sei, mãe, e foi isso que me confundiu mais naquele momento. Ao ver a mesma pessoa, saber que uma era ficção e a outra real e no entanto, esperei tudo o que havia vivido com a primeira mas... não era ela.
     - É tão confuso, sim. É como conhecer algo novo que não esperavamos num amigo - finalizou Célia.

     Os dois olharam-se.

     Mateus repensou no que havia pensado nessa manhã. "Será que voltarei a ver a rapariga da minha imaginação?"...

     - Mateus... gostava que me contasses sobre o que falaste sobre o pai.
     - Não quero - respondeu levantando a voz e revirando os olhos.

     Célia deu por entender que não insistiria. Mateus apercebeu-se e acalmou-se. Pensou durante alguns segundos e arrependeu-se.

     - Uma altura, o pai contou-me um segredo...
     - Eu sei - respondeu Célia.
     - ... que ele tinha um "dom" parecido com o meu. E que uma maneira que ele tinha de o fazer parar ou abrandar era bebendo...
     - Filho... porque nunca me contaste?
     - Não sei... queria experimentar se resultava... Mas não resultou. Ele estava enganado e repara no que aconteceu, só piorou...

     Célia colocou uma mão sobre a sua boca.

     - Eu sei que errei. Agora sei...

     Mateus continuava a ouvir música dentro de si. Célia retirou a mão da sua cara e agarrou a mão do seu filho.

O efeito do defeito - Mateus

Parte 5
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- Manhã 10 de Janeiro -


     Por mais que uma situação podesse desmoronar o estado de espírito de Mateus, ele conseguia sempre adormecer, descansar e repôr as suas ideias em ordem pela manhã. Não que o conseguisse voluntariamente, apenas era capaz de o fazer com o apoio da sua capacidade. E, naturalmente, a sua mente poderosa necessitava de mais descanso que qualquer uma outra. "Dormir" implicava ser uma necessidade maior que qualquer uma outra, ou então, o dia seguinte seria complicado e doloroso.

     Mateus havia compreendido essa necessidade e os seus horários eram cumpridos como regras. Facilmente, para ele, que a memória era um utensílio muito mais prático que o comum.

     O sol estreitava por mais uma manhã.

     Mateus deixou-se ficar a descansar até mais tarde. A temperatura fresca do seu quarto e a luminosidade harmoniavam o ambiente. Deitado, começou a ouvir as suas músicas de memória.

     - Tenho fome - afirmou a si próprio.

     Levantou-se calmamente da sua cama e caminhou para a cozinha. Abriu o frigorífico e retirou o leite. Agarrou uma taça branca do armário e os cereais na porta do lado. Encheu a taça de cereais e enquanto os devorava, aos poucos, acrescentava um fio de leite. Sorriu sozinho.

     Admirou-se por ser capaz de aletrar o volume com que a música ecoava dentro da sua cabeça. Assim podia perfeitamente estar atento ao exterior sem interromper a sua melodia de que tanto gostava. Ser capaz daquela proeza fazia-o pensar que poderia superar qualquer problema na sua vida. A música acalmava-o e fazia-o sentir maior.

     Depois da refeição matinal, Mateus voltou para o seu quarto.

     Deitado, começou a pensar. A música parecia apoia-lo na sua concentração. Era a música da sua infância que ouvia com o seu pai. A mente de Mateus funcionava assim. Um pequeno detalhe desencadeava todas as memórias, as mais próximas e mais importantes.

     Mateus lembrou a primeira conversa com Maria na noite em que se encontraram.

     "Seria o facto de estar embriagado daquela maneira e a simples ideia de ela ter falado no seu pai que me fez entender que eu sentia falta do meu pai? Seria o delírio relacionado com ele? Então porquê a minha saudade por ele se mascarou em forma feminina, e porquê a Maria? Porquê o delírio habitual com ela? Porquê a minha cabeça ser tão complicada que nem eu próprio me consigo entender?", Mateus revirou-se na cama, "Porquê a minha mente me faz acreditar que ela é real quando apenas é uma ilusão criada por mim? Será um sinal do meu subconsciente? Como posso perder a noção disto quanto estou em delírio? Como me apaixonei por uma ilusão minha?"

     "São dez horas e cinquenta", pensou seguro e virando-se para o outro lado da cama, Mateus olhou para o relógio e confirmou. O telefone tocou de seguida.

     - Bom dia, mãe.
     - (Bom dia, filho. Liguei para saber se estava tudo bem.)
     - Sim, está. Vais trabalhar até mais tarde? Ontem voltaste para o Hospital e nem dormiste.
     - (Não, hoje vou sair para almoçar e terminar o meu turno. Logo à noite descansarei.)

     Houve um momento de silêncio.

     - (Não te esqueças datua medicação, está na hora.)
     - Sim, eu sei. Estou mesmo agora a pegar nela.
     - (Vem ter comigo, Mateus, ao café do costume para falar-mos. Depois do almoço, combinado?)
     - Claro, mãe.
     - (Tem cuidado. Um beijo. A mãe tem que ir.)
     - Um beijo, mãe.

     Mateus pousou o telefone. Segurou dois comprimidos e tomou-os.

     Ao engoli-los, pensou para si. "Alguma vez mais verei a rapariga? Poderei eu falar com ela consciente?", Mateus preparou-se. Tomou um banho calmo e vestiu-se. Almoçou o que restava do dia anterior, que estava guardado no frigorífico. A seguir, sentou-se em frente à televisão. Mas sem a ligar.

     "Passaram cinco meses e três dias e ainda não consegui perceber o que é esta ilusão.", pensou, "Como serei capaz de me controlar da próxima vez? E se isto continuar para sempre?"

     Mateus apercebeu-se de que ouvia uma outra música. Associando, relembrou o momento. Era uma música que havia ouvido com o seu amigo Gonçalo. Mais uma vez, várias memórias surgiram.

     Levantou-se e saiu de casa com brutidão. Uma música diferente, selvagem e alta, apedrejava os seus pensamentos para os poder controlar. Não conseguia afastar alguns deles. Um, em particular, que o fazia sentir. A recém saudade pelo amigo.

     No momento da frustração e da memória, Mateus correu em direcção ao único lugar onde menos queria ir. Apercebendo-se, deixou-se levar. Percebeu que não podia fugir, a sua mente por vezes tinha que lhe mostrar a verdade. Ao chegar ao cemitério caminhou calmamente.

     Aproximando-se, baixou a cabeça em respeito. Por vários minutos, permaneceu quieto e em silêncio. Em total silêncio. Retribuíndo o tempo em que jamais voltou a visitar a família de Gonçalo.

     Levantou a cabeça. Afastando-se o mais lentamente possível. Olhou com atenção.

     "Uma flôr branca", pensou, "Como ainda está viva depois de tanto tempo... Não, não é a mesma.", reflectiu, escapando um sorriso de tontice. Mas a ideia não era de desvalorizar. Claramente, a flôr simbolizava algo.

     Mateus regressou, pensando sobre o assunto com mais calma, para o encontro com sua mãe.

O efeito do defeito - Gaspar

Parte 6
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- Manhã 10 de Janeiro -

     - Ouvi dizer que hoje vamos almoçar batatas fritas! - informou o pequeno Jorge.
     - Batatas fritas? Há tanto tempo que não comia batatas fritas! - sorriu Duarte.
     - Podera! Aqui nunca cozinham nada disso...
     - Que terá feito o Gaspar para estar na directoria agora? - perguntou Samuel.

     Todos encolheram os ombros.

     - Que estavas a fazer perto da cantina? - perguntou a directora.

     Gaspar não respondeu. Tão pouco olhava nos olhos da directora. Apenas observava a pequena sala decorada aos anos 40.

     - Tens noção do perigo em que te colocaste ao tentar invadir um local inseguro? Gaspar?

     Gaspar levantou os olhos e respondeu em voz reprimida.

     - Não estava lá para entrar.
     - Então, o que te levou a sair da aula?
     - Apenas queria ver.

     A directora levantou-se. Arrumou a sua capa nas costas da cadeira e escreveu uma nota numa folha branca.

     - Podes regressar. Espero que estejamos esclarecidoseque não se volte a repetir.
     - Sim, senhora.
     - Vá. Leva este bilhete para o teu professor. Ele saberá o que fazer.

     Gaspar agarrou o papel e saiu do gabinete.

     Era hora de recreio e descanso. As crianças corriam de um lado para o outro. Risos e gargalhadas ecoavam pelos pátios da escola.

     - Que aconteceu, Gaspar? - perguntou Samuel.
     - Estou de castigo. Tenho que apresentar um trabalho até amanhã de manhã.
     - Porque foste à cantina?
     - Por nada. Pensei que podia encontrar alguma coisa - disse misteriosamente.
     - Alguma coisa? Achavas que ias encontrar o quê? Estiveram lá polícias e investigadores, o que quer que fosse que encontrasses não serviria de nada.

     Gaspar olhou para o vazio.

     - Tens razão. Que estupidez a minha.
     - Queres ajuda para o teu trabalho? - disponibilizou-se Samuel.
     - Não te preocupes , Sam, além do mais é o meu castigo.


- Tarde 10 de Janeiro -

     Gaspar almoçou sozinho na livraria da escola. Os livros e o cadernos estavam espalhados pela mesa. Ainda não tinha começado o trabalho de matemática que o professor lhe tinha imposto como castigo.

     A livraria estava deserta, à excepção da funcionária que tomava conta dele do balcão à entrada. Lá fora ouviam-se ainda as crianças no recreio.

     A campainha tocou. Em segundos toda a escola fez silêncio.

     Gaspar não conseguia concentrar-se. A todos os segundos lembrava a imagem da pobre rapariga desfigurada e queimada. Não lhe saía da cabeça. Nem a forma como ela não se tinha apercebido do acidente e da sua própria morte. Horas passaram.

     Gaspar levantou-se. Fingiu procurar um livro pelas prateleiras. Nesse momento lembrou o homem vestido de negro. "Quem seria ele?" - pensou. "Porquê dirigir-se apenas a mim? E como saberia ele o meu nome?" - Gaspar continuou a percorrer com a mão pelos livros mas sem lhes dar atenção. "De que segredo estaria ele a falar? Falou do meu segredo... E como saberia ele se eu nunca contei a ninguém?"

     - Gaspar?

     Ao ouvir o seu nome, despertou do seu pensamento. à entrada estava o professor.

     - Sim, professor.
     - Está quase na hora de voltar-mos para o orfanato.

     Desorganizadamente, arrumou os livros e o caderno na sua mochila. Gaspar continuou o seu pensamento a caminho do Orfanato. "Estaria ele a falar a sério sobre me vir buscar ao Orfanato?". A tarde estava a escurecer e Gaspar começava a sentir uma pequena ansiedade despertar.

     Ao chegarem ao Orfanato, Gaspar permaneceu só no seu quarto partilhado. Alguém bateu à porta.

     - Gaspar?
     - Sam...
     - Como correu o teu trabalho? - perguntou Samuel.
     - Nada de especial... - omitiu.

     Samuel deitou-se na sua cama e aconchegou-se.

     - Hoje estás um pouco estranho. Que se passa contigo?
     - Não sei. Deve ter sido do acidente de hoje...

     Samuel baixou os olhos em pensamento e, por fim, fechou-os.

     - Já vais dormir? - perguntou Gaspar ligando o computador.
     - Apenas fechar os olhos, estou cansado - sorriu.

     Gaspar olhou para o seu amigo. Esfregou uma vez os olhos. De seguida, esfregou novamente. Acalmou-se, sustendo a respiração, tentando perceber o que estava a acontecer.

     Samuel estava deitado na cama. Sobre ele pairava uma nuvem branca opaca e quase transparente. Ondulava ao ritmo de uma aragem suave apenas envolvida em torno do seu corpo. Gaspar olhava com admiração e interrogação.

     Apercebendo-se que Sam tinha adormecido rapidamente, Gaspar aproximou-se. Esticou a sua mão em direcção à nuvem. O seu gesto nada a afectou. Esfregou uma outra vez os olhos.

     Enquanto contemplava o seu amigo, a luz do seu quarto apagou-se, assim como o computador e o candeeiro. Gaspar espreitou pela janela e viu que toda a rua estava sem electricidade. Uma dor brusca e ácida soltou-se no seu peito.

     "Será ele?" - pensou.

Música ♫

Há uma música dentro de mim que ninguém consegue simplesmente ouvir.
Esta música, tento desesperadamente libertar sem nunca conseguir.
Procuro em mim os instrumentos que a compõem sem nunca os descobrir.

É uma música infinita paralela ao espaço que a cada segundo me dá um novo compasso. É um som de memórias e de novos momentos tocados em glórias por instrumentos lentos.

É engraçado como há pessoas transparentes e que a sua música paira como uma aura.
Mas é estranho ser-se uma pessoa que esconde a sua música numa jaula.
E outras, que apesar de terem músicas belas, não se conseguem libertar delas.

Quero apenas mostrar a minha música para todos. Quero fazê-lo simples e sem engodos.
Este, é o som da tranquilidade. Esta, é a fórmula humana para a cura. A mais simples criação da natureza diluída pelos sentidos. Esta, é a minha melodia pura.

Que perdura.

O efeito do defeito - Gaspar

Parte 5
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- Manhã 10 de Janeiro -


     A aula de matemática do primeiro turno estava a correr calmamente quando se deu uma explosão num edifício próximo. O alarme soou por todas as salas e corredores. Em segundos instalou-se o pânico.

     - De pé rapazes! Formem uma fila e deixem todos os vossos objectos na sala - alertou o professor enquanto caminhava para a porta - Vamos sair com calma e sem correr.

     Todos se levantaram e seguiram o professor.

     - Que terá acontecido? A sala estremeceu com o barulho! - perguntou o pequeno Jorge.
     - Parece ter vindo da cantina! - supôs o Duarte, convicto e assustado ao mesmo tempo.

     Pelo corredor, as outras turmas saíam em fila das suas salas e seguiam todos a mesma direcção. Por vezes ouviam-se alguns gritos de pânico entre as conversas stressantes sem fim.

     - Vamos todos em direcção ao pátio, pessoal, sem pressas nem empurrões - ordenou o professor de matemática.
     - O que aconteceu? - perguntou o Jorge incrédulo.

     O grande pátio em minutos se encheu de crianças de toda a instituição.

     - Ainda não sabemos ao certo. Esperem aqui - ordenou outra vez.

     Vários professores tentavam acalmar as crianças mais novas que choravam de medo. Dois funcionários traziam os ultimos rapazes que estavam a ter aula no ginásio, entre eles Gaspar e Samuel.

     - Sam! Gaspar! Estamos aqui! - gritou Jorge levantando os braços no ar.
     - Meu! Ouviste o estrondo?
     - Estavamos no ginásio ao pé da cantina quando sentimos a explusão! Estremeceu tudo! - explicou Samuel.
     - Eu disse que a explosão veio de lá! - afirmou Duarte.
     - Veio mesmo da cantina - concluíu Gaspar, olhando em sua volta para todas as crianças ocuparem o enorme pátio longe dos edifícios.
     - Que terá sido? - perguntou Jorge.
     - Fuga de gás, acho que é óbvio - respondeu um outro rapaz aproximando-se.
     - Raúl! Como estás? - cumprimentaram os rapazes.
     - É possivel, aquela cozinha estava a precisar de uns arranjos! - disse Jorge exaltado.

     Uma mulher com uma capa escura aproximou de todos carregando nas mãos um megafone. Era a directora da escola do orfanato. De seguida os professores pediram a todos os alunos para a ouvirem com atenção.

     - Bom dia crianças! - falou em voz alta e aumentada pelo aparelho - Um incidente ocorreu há pouco na cantina. Os bombeiros estão no seu caminho para aqui e tudo será resolvido. Felizmente ninguém estava na cantina no momento da explusão. Supomos que tenha sido uma fuga de gás que tenha causado a explosão. Peço a todos vocês que mantenham a calma e que permaneçam aqui até os bombeiros chegarem e resolverem o problema.

     Logo após, ouviram-se as sirenes e de imediato uma equipa de bombeiros correu com os seus equipamentos para o local.

     - Gaspar! - gritou Sam, apontando para o edifício da cantina.

     Um fumo negro elevava-se no céu vindo das janelas das cozinhas. O camião vermelho, entre várias manobras, aproximou-se do edifício e os bombeiros interviram em segundos com as mangueira de água.

     Passaram duas horas até o fumo ter desaparecido e a cantina ser livre de perigo. Poucos minutos a seguir a polícia chegou para investigar. Depois de uma longa explicação da directora, todas as crianças e professores retomaram as salas e continuaram com as aulas. Samuel, Gaspar, Duarte, Jorge e Raúl decidiram aproximarem-se da cantina para observarem de perto e matar a curiosidade.

     - Olha como está tudo queimado e destruído! - surpreendeu-se Jorge.
     - Olhem, são investigadores! - apontou Samuel.

     Gaspar sentiu-se nervoso e ansioso, não parava de olhar em sua volta.

     - O que estão aqui a fazer, rapazes? Não podem estar aqui! - perguntou o funcionário do ginásio.
     - Viemos só buscar as mochilas e os equipamentos de ginástica, senhor Gustávo - respondeu habilmente Samuel.
     - Rápido, então, e voltem para as aulas!

     Na sala de aula, as conversas eram repetitivas e acabavam todas no mesmo tema: a explusão na cantina. Muitos dos rapazes sentiam receio. Outros preocupavam-se com o almoço. Mas Gaspar parecia desligado do acontecimento.

     - Porque terá vindo aqui a polícia? - perguntou Duarte, virando-se para trás.
     - Não faço ideia... Meu, estás bem? - perguntou Samuel tocando no braço de Gaspar - pareces cansado ou enjoado.
     - Não sei, deve ter sido do susto - respondeu, escorregando um sorriso - Acho que preciso de apanhar ar.

     Com autorização do professor, Gaspar saiu da sala, sozinho.

     Ao entrar na casa de banho lavou a cara e sentou-se a pensar. Ao sair, espreitou pela porta. Não havendo ninguém nos corredores caminhou ligeiramente até sair do edifício. Deu a volta pela traseira para não ser visto e correu em direcção à cantina. Apenas o senhor Gustávo rondava o local. Nada que dificultasse a entrada na cantina, mesmo assim Gaspar estava atento e agia com cuidado.

     A dada altura, o senhor Gostavo afastou-se o suficiente para que Gaspar podesse atravessar o pátio e entrar pelas traseiras. Correu sem abrandar no momento certo até chegar à lateral oposta. Espreitou por uma janela com os vidros quebrados e aproximou-se...

     - "Hei! Quem és tu?" - gritou em dor uma voz vinda do interior dos destroços.

     Gaspar aterrorizou-se. Afastou-se da janela e sentou-se no chão.

     - "Tu vês-me?" - continuou - "Nenhum daqueles polícias me viu, mas tu sim! Eu vi como me olhaste nos olhos!"

     Gaspar paralizou de cabeça encostada na parede e olhos fechados durante segundos. No entanto, parou para pensar que não reconhecia a rapariga do orfanato. Respondeu naturalmente.

     - Sim...
     - "Tenho tanto medo!" - a voz estremecia e parecia chorar - "Não consigo ver o meu corpo!"

     Gaspar ouviu o choro agoniado da rapariga do outro lado da parede.

     - Quem és tu e o que te passou pela cabeça para teres estado na cantina? - perguntou.
     - "Não sei... Não sei!"

     Para Gaspar, o choro que ouvia parecia tornar-se mais físico que psicológico, como uma dor real.

     Num piscar de olhos, Gaspar apercebeu-se que estava sozinho.

     - Hei! Não podes estar aqui! - gritou o funcionário - Não devias estar nas aulas?

     Gaspar levantou-se mas não respondeu.

     - Rapaz, não podes estar aqui, foste avisado! Anda, tenho que te levar ao conselho.

     Gaspar esperava no banco de espera à porta do escritório da directora. Apenas pensava na rapariga desconhecida e no que havia acontecido que nem tinha reflectido no que estaria ele ali à espera. Entretanto uma secretária trazia uma mensagem.

     - Gaspar? - perguntou a mulher.
     - Sim?
     - Está lá embaixo uma pessoa que precisa falar contigo. Eu aviso a directora.

     Gaspar desceu até ao portão de saída, controlado por um funcionário guarda. Do outro lado do portão esperava um homem alto e moreno. Vestido completamente de negro.

     - Olá Gaspar - cumprimentou gentilmente.
     - Como sabe o meu nome?
     - Isso não importa agora. O que importa é que eu sei que tu queres sair daqui.

     Gaspar olhou-o com mais atenção, mas desconfiando mais ainda.

     - Eu sei que tens um segredo e quero ajudar-te. Não tens que me responder. Apenas ouve-me.
     - Quem é o senhor? - perguntou indignado numa voz grossa para a sua idade.
     - Um amigo. Um amigo que já ajudou alguém a sair do mesmo orfanato que o teu.

     Gaspar negou com a cabeça sem desviar o olhar.

     - Gaspar, esta noite, a energia eléctrica do orfanato para o qual regressam todos os dias será desligada. Será tua a decisão de ficares ou fugires. Aquilo que sempre quiseste mas nunca conseguiste sozinho.
     - Como sabe isso tudo? Nem o conheço!
     - Conhecerás. E muitos outros como tu - afastando-se do portão, desviou o olhar para o guarda - O meu nome é Raphael. Ficarei à tua espera.

     Gaspar permaneceu no portão, vendo o homem misterioso partindo.

Sol ☀

Hoje olhei para o céu e não o consegui olhar.
Tive medo de o olhar directamente pois sempre me disseram que me podia cegar. Vejo-o em fotografias e na televisão mas não o consigo ver quando ele me desenha no chão. Sinto-o aquecer-me o rosto; sinto-o todos os dias quando lhe fecho os olhos e me seca o cabelo; mas não consigo vê-lo.

Sei que é um belo amarelo, uma bola de luzes imensas e brilhantes, jovem infinito que guarda diamantes. Que está presente como o ar que respiro; como o sonho que nunca lembro.
Mas que está sempre comigo, quem sabe, protegendo-me de um inimigo.

Daria a volta ao mundo para o ver a todas as horas do dia. Treparia as tempestades para o ver iluminar as nuvens.
Choro de noite, sob a claridade que ele empresta, para que ele me seque as lágrimas pela aurora. Então ele chora quando chove. Chora comigo e me mostra um sorriso, colorido, de quem nunca se deixa ser abatido.

Quero perder o medo. Quero olha-lo nas suas coroas de radiação.
Não me importarei se me cegar a vista, pois jamais cegará o meu coração.

O efeito do defeito - Gabriela

Parte 6
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- Tarde 10 de Janeiro -

     "Afinal vão precisar de mim aqui no café. Como já não tenho a tarde livre não vamos poder estar juntos. Desculpa. Talvez amanhã. Beijo."

     Gabriela leu novamente a mensagem que havia recebido do seu amigo, na hora de almoço. Olhou mais uma vez em sua volta pelo parque e decidiu regressar a casa.

     - Voltei Soraia - falou em voz destinta pela casa.
     - "Oh não!... É a Gabi!... Que faço?"

     Uma outra voz, masculina, cambaleou.

     - "Não! Quem será?... vestir!... Que vergonha!... não esperava isto..."

     Gabriela sorriu por instantes e foi para o seu quarto para não haverem embaraços.

     - "Desculpa amiga..." - pensou Soraia para que ela a "escutasse".

     Gabriela arrumou o livro que havia deixado sobre a cama numa prateleira no seu armário. Tentou não "escutar" os dois enquuanto se atrapalhavam a vestir. Mas não o conseguiu.

     - "És tão lindo! Mas despacha-te, que vergonha!" - "escutou" mais uma vez Gabriela que sorriu.
     - "Não posso crer nisto... as sapatilhas..." - pensou a voz masculina - "Adoro... o teu cabelo assim... despenteado... perfeita... vou sentir a tua falta..."
     - "Que vai ela pensar..."

     Gabriela pressentiu a porta fechar. No mesmo instante, Soraia entrou no quarto de Gabriela, retocando o seu cabelo.

     - "Desculpa, sério... te ter contado mas... como saiste, pensei... que demorasses mais tempo..."
     - Não sejas parva - disse Gabriela.
     - "Onde foste... Que se passa?..."

     Gabriela olhou para a amiga.

     - Não me posso deixar ir a baixo por meras complicações Soraia.
     - "Isso mesmo... é isso que gosto... estou apaixonada..."

     Gabriela levantou-se e abraçou a sua amiga, sorrindo e apertando com força.

     - Vamos ao café do Vasco - sugeriu.
     - "Mas eu preciso arranjar-me... pentear-me... que sensação!..."

     Gabriela não conseguia parar de se sentir bem pela amiga. "Escuta-la" era tão gratificante na sua mudança constante de pensamentos. Sentia-se contente por Soraia, pois tinha a certeza que ele sentia o mesmo por ela.

     "Vamos ter contigo ao café agora. Beijos." Enviar mensagem.

     Ao chegarem ao café, Vasco servia um rapaz que se encontrava na esplanada.

     - "Gabriela... viste até aqui... não vou... poder sair ainda..." - pensou ele ao vê-la chegar - (Olá) - cumprimentou em gestos.
     - Olá Vasco. Viemos só tomar o lanche.
     - Olá Vasco - cumprimentou também Soraia.

     Gabriela e Soraia entraram e Vasco aproximou-se da mesa onde as raparigas se sentaram.

     - Olá, Gabi. Des-cul-pa - disse ele devagar.
     - Olá Soraia - cumprimentou - Diz à Gabriela que eu peço desculpa mas que ainda não posso sair.

     Soraia repetiu para Gabriela em gestos. Era a única forma de Vasco se poder comunicar com ela, apesar de Gabriela saber sempre o que ele pensava. Ele sabia que Gabriela era capaz de lhe ler os lábios mas por vezes tornava-se difícil quando as frases eram longas.

     - Não tem mal, Vasco, sério. Eu compreendo - respondeu Gabriela para Vasco.
     - Diz-lhe que amanhã terei o dia de folga e que poderemos sair para passearmos os três.

     Soraia voltou a fingir em gestos.

     - "Porque... não lhe contas... também?" - pensou Soraia.

     Gabriela não respondeu à pergunta.

     - Sim. Combinado Vasco. Amanhã, depois das aulas da Soraia.
     - Combinado. Que vão desejar?

     Enquanto Soraia pedia, Gabriela olhava pelo vidro do café para a rua e para a esplanada. Não havia mais ninguém naquele café a não ser elas, um casal de idosos e um rapaz na esplanada. Começou a sentir-se confusa. Um ligeiro zumbido pressionou os seus ouvidos enquanto tentava "escutar".

     Soraia tocou-lhe no braço para lhe chamar a atenção.

     - "Que se passa?" - pensou.
     - Sinto-me tonta...
     - "Como assim tonta?... pareces distraída..." pensou Soraia, enquanto fingia olhar distraída para os lados para não manter contacto com Gabriela que respondia em tom baixinho.
     - Senti um barulho diferente...
     - "Como... se tivesses ouvido? Será que...
     - Não sei.

     Vasco voltou à mesa com os lanches e os cafés.

     - Não posso estar muito tempo aqui convosco. O meu patrão está ali. Até já.

     Soraia acenou com a cabeça em afirmação.

     - Não lhe posso contar - disse Gabriela em voz baixa - Ele não é tão aberto como tu. Ia ser muito difícil para ele compreender. Não iria suportar "escutar" os pensamentos deles depois de saber o que eu consigo fazer. Não sei...
     - "Mas podias... tentar..."

     Gabriela tomou o seu café e em segundos petrificou.

     - "Gabi?" - chamou a amiga.

     Gabriela continuava com um ar de vazio, como uma estátua de pedra.

     - "Gariela! O que se passa?" - Soraia apercebendo-se que ela não a "escutava" agarrou-lhe um braço. Gabriela olhou-a nos olhos, quase em lágrimas e com um sorriso escondido.

     Soraia abanou a cabeça em sinal de interrogação.

     - Não posso acreditar... - disse em voz baixa e desacreditada - Estou a ouvir música!
 

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