Rafael Braga

O efeito do defeito - Gaspar

Parte 6
_____________________________________________________________________________________

- Manhã 10 de Janeiro -

     - Ouvi dizer que hoje vamos almoçar batatas fritas! - informou o pequeno Jorge.
     - Batatas fritas? Há tanto tempo que não comia batatas fritas! - sorriu Duarte.
     - Podera! Aqui nunca cozinham nada disso...
     - Que terá feito o Gaspar para estar na directoria agora? - perguntou Samuel.

     Todos encolheram os ombros.

     - Que estavas a fazer perto da cantina? - perguntou a directora.

     Gaspar não respondeu. Tão pouco olhava nos olhos da directora. Apenas observava a pequena sala decorada aos anos 40.

     - Tens noção do perigo em que te colocaste ao tentar invadir um local inseguro? Gaspar?

     Gaspar levantou os olhos e respondeu em voz reprimida.

     - Não estava lá para entrar.
     - Então, o que te levou a sair da aula?
     - Apenas queria ver.

     A directora levantou-se. Arrumou a sua capa nas costas da cadeira e escreveu uma nota numa folha branca.

     - Podes regressar. Espero que estejamos esclarecidoseque não se volte a repetir.
     - Sim, senhora.
     - Vá. Leva este bilhete para o teu professor. Ele saberá o que fazer.

     Gaspar agarrou o papel e saiu do gabinete.

     Era hora de recreio e descanso. As crianças corriam de um lado para o outro. Risos e gargalhadas ecoavam pelos pátios da escola.

     - Que aconteceu, Gaspar? - perguntou Samuel.
     - Estou de castigo. Tenho que apresentar um trabalho até amanhã de manhã.
     - Porque foste à cantina?
     - Por nada. Pensei que podia encontrar alguma coisa - disse misteriosamente.
     - Alguma coisa? Achavas que ias encontrar o quê? Estiveram lá polícias e investigadores, o que quer que fosse que encontrasses não serviria de nada.

     Gaspar olhou para o vazio.

     - Tens razão. Que estupidez a minha.
     - Queres ajuda para o teu trabalho? - disponibilizou-se Samuel.
     - Não te preocupes , Sam, além do mais é o meu castigo.


- Tarde 10 de Janeiro -

     Gaspar almoçou sozinho na livraria da escola. Os livros e o cadernos estavam espalhados pela mesa. Ainda não tinha começado o trabalho de matemática que o professor lhe tinha imposto como castigo.

     A livraria estava deserta, à excepção da funcionária que tomava conta dele do balcão à entrada. Lá fora ouviam-se ainda as crianças no recreio.

     A campainha tocou. Em segundos toda a escola fez silêncio.

     Gaspar não conseguia concentrar-se. A todos os segundos lembrava a imagem da pobre rapariga desfigurada e queimada. Não lhe saía da cabeça. Nem a forma como ela não se tinha apercebido do acidente e da sua própria morte. Horas passaram.

     Gaspar levantou-se. Fingiu procurar um livro pelas prateleiras. Nesse momento lembrou o homem vestido de negro. "Quem seria ele?" - pensou. "Porquê dirigir-se apenas a mim? E como saberia ele o meu nome?" - Gaspar continuou a percorrer com a mão pelos livros mas sem lhes dar atenção. "De que segredo estaria ele a falar? Falou do meu segredo... E como saberia ele se eu nunca contei a ninguém?"

     - Gaspar?

     Ao ouvir o seu nome, despertou do seu pensamento. à entrada estava o professor.

     - Sim, professor.
     - Está quase na hora de voltar-mos para o orfanato.

     Desorganizadamente, arrumou os livros e o caderno na sua mochila. Gaspar continuou o seu pensamento a caminho do Orfanato. "Estaria ele a falar a sério sobre me vir buscar ao Orfanato?". A tarde estava a escurecer e Gaspar começava a sentir uma pequena ansiedade despertar.

     Ao chegarem ao Orfanato, Gaspar permaneceu só no seu quarto partilhado. Alguém bateu à porta.

     - Gaspar?
     - Sam...
     - Como correu o teu trabalho? - perguntou Samuel.
     - Nada de especial... - omitiu.

     Samuel deitou-se na sua cama e aconchegou-se.

     - Hoje estás um pouco estranho. Que se passa contigo?
     - Não sei. Deve ter sido do acidente de hoje...

     Samuel baixou os olhos em pensamento e, por fim, fechou-os.

     - Já vais dormir? - perguntou Gaspar ligando o computador.
     - Apenas fechar os olhos, estou cansado - sorriu.

     Gaspar olhou para o seu amigo. Esfregou uma vez os olhos. De seguida, esfregou novamente. Acalmou-se, sustendo a respiração, tentando perceber o que estava a acontecer.

     Samuel estava deitado na cama. Sobre ele pairava uma nuvem branca opaca e quase transparente. Ondulava ao ritmo de uma aragem suave apenas envolvida em torno do seu corpo. Gaspar olhava com admiração e interrogação.

     Apercebendo-se que Sam tinha adormecido rapidamente, Gaspar aproximou-se. Esticou a sua mão em direcção à nuvem. O seu gesto nada a afectou. Esfregou uma outra vez os olhos.

     Enquanto contemplava o seu amigo, a luz do seu quarto apagou-se, assim como o computador e o candeeiro. Gaspar espreitou pela janela e viu que toda a rua estava sem electricidade. Uma dor brusca e ácida soltou-se no seu peito.

     "Será ele?" - pensou.

0 comentários:

Enviar um comentário

 

Seguidores