Rafael Braga

O efeito do defeito - Mateus

Parte 5
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- Manhã 10 de Janeiro -


     Por mais que uma situação podesse desmoronar o estado de espírito de Mateus, ele conseguia sempre adormecer, descansar e repôr as suas ideias em ordem pela manhã. Não que o conseguisse voluntariamente, apenas era capaz de o fazer com o apoio da sua capacidade. E, naturalmente, a sua mente poderosa necessitava de mais descanso que qualquer uma outra. "Dormir" implicava ser uma necessidade maior que qualquer uma outra, ou então, o dia seguinte seria complicado e doloroso.

     Mateus havia compreendido essa necessidade e os seus horários eram cumpridos como regras. Facilmente, para ele, que a memória era um utensílio muito mais prático que o comum.

     O sol estreitava por mais uma manhã.

     Mateus deixou-se ficar a descansar até mais tarde. A temperatura fresca do seu quarto e a luminosidade harmoniavam o ambiente. Deitado, começou a ouvir as suas músicas de memória.

     - Tenho fome - afirmou a si próprio.

     Levantou-se calmamente da sua cama e caminhou para a cozinha. Abriu o frigorífico e retirou o leite. Agarrou uma taça branca do armário e os cereais na porta do lado. Encheu a taça de cereais e enquanto os devorava, aos poucos, acrescentava um fio de leite. Sorriu sozinho.

     Admirou-se por ser capaz de aletrar o volume com que a música ecoava dentro da sua cabeça. Assim podia perfeitamente estar atento ao exterior sem interromper a sua melodia de que tanto gostava. Ser capaz daquela proeza fazia-o pensar que poderia superar qualquer problema na sua vida. A música acalmava-o e fazia-o sentir maior.

     Depois da refeição matinal, Mateus voltou para o seu quarto.

     Deitado, começou a pensar. A música parecia apoia-lo na sua concentração. Era a música da sua infância que ouvia com o seu pai. A mente de Mateus funcionava assim. Um pequeno detalhe desencadeava todas as memórias, as mais próximas e mais importantes.

     Mateus lembrou a primeira conversa com Maria na noite em que se encontraram.

     "Seria o facto de estar embriagado daquela maneira e a simples ideia de ela ter falado no seu pai que me fez entender que eu sentia falta do meu pai? Seria o delírio relacionado com ele? Então porquê a minha saudade por ele se mascarou em forma feminina, e porquê a Maria? Porquê o delírio habitual com ela? Porquê a minha cabeça ser tão complicada que nem eu próprio me consigo entender?", Mateus revirou-se na cama, "Porquê a minha mente me faz acreditar que ela é real quando apenas é uma ilusão criada por mim? Será um sinal do meu subconsciente? Como posso perder a noção disto quanto estou em delírio? Como me apaixonei por uma ilusão minha?"

     "São dez horas e cinquenta", pensou seguro e virando-se para o outro lado da cama, Mateus olhou para o relógio e confirmou. O telefone tocou de seguida.

     - Bom dia, mãe.
     - (Bom dia, filho. Liguei para saber se estava tudo bem.)
     - Sim, está. Vais trabalhar até mais tarde? Ontem voltaste para o Hospital e nem dormiste.
     - (Não, hoje vou sair para almoçar e terminar o meu turno. Logo à noite descansarei.)

     Houve um momento de silêncio.

     - (Não te esqueças datua medicação, está na hora.)
     - Sim, eu sei. Estou mesmo agora a pegar nela.
     - (Vem ter comigo, Mateus, ao café do costume para falar-mos. Depois do almoço, combinado?)
     - Claro, mãe.
     - (Tem cuidado. Um beijo. A mãe tem que ir.)
     - Um beijo, mãe.

     Mateus pousou o telefone. Segurou dois comprimidos e tomou-os.

     Ao engoli-los, pensou para si. "Alguma vez mais verei a rapariga? Poderei eu falar com ela consciente?", Mateus preparou-se. Tomou um banho calmo e vestiu-se. Almoçou o que restava do dia anterior, que estava guardado no frigorífico. A seguir, sentou-se em frente à televisão. Mas sem a ligar.

     "Passaram cinco meses e três dias e ainda não consegui perceber o que é esta ilusão.", pensou, "Como serei capaz de me controlar da próxima vez? E se isto continuar para sempre?"

     Mateus apercebeu-se de que ouvia uma outra música. Associando, relembrou o momento. Era uma música que havia ouvido com o seu amigo Gonçalo. Mais uma vez, várias memórias surgiram.

     Levantou-se e saiu de casa com brutidão. Uma música diferente, selvagem e alta, apedrejava os seus pensamentos para os poder controlar. Não conseguia afastar alguns deles. Um, em particular, que o fazia sentir. A recém saudade pelo amigo.

     No momento da frustração e da memória, Mateus correu em direcção ao único lugar onde menos queria ir. Apercebendo-se, deixou-se levar. Percebeu que não podia fugir, a sua mente por vezes tinha que lhe mostrar a verdade. Ao chegar ao cemitério caminhou calmamente.

     Aproximando-se, baixou a cabeça em respeito. Por vários minutos, permaneceu quieto e em silêncio. Em total silêncio. Retribuíndo o tempo em que jamais voltou a visitar a família de Gonçalo.

     Levantou a cabeça. Afastando-se o mais lentamente possível. Olhou com atenção.

     "Uma flôr branca", pensou, "Como ainda está viva depois de tanto tempo... Não, não é a mesma.", reflectiu, escapando um sorriso de tontice. Mas a ideia não era de desvalorizar. Claramente, a flôr simbolizava algo.

     Mateus regressou, pensando sobre o assunto com mais calma, para o encontro com sua mãe.

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