Rafael Braga

O efeito do defeito

Existe um rapaz com um grande talento. Muito invulgar. Aprendera a escrever aos seis anos de idade e desde então aperfeiçoara a sua escrita. Mais tarde, o jovem estudante e totalmente reservado, descobrira uma forma de controlar os seus sonhos. Certa noite ele escreveu em paz num dos seus novos cadernos uma carta a lembrar o seu melhor momento da vida. Nessa noite o rapaz sonhou feliz.

Shutter Island



Ainda há filmes que surpreendem. Sem palavras.

Uma mentira, uma omissão.

No limite da paciência,
Na barreira trespassada,
No auge da insolência,
Na fúria mais arrasada.
O interior exterioriza-se,
A memória generaliza-se,
O ódio sangra, o rancor se une,
A dor da acção impune.
Revoltas às voltas,
Palavras às soltas,
Discussões aprontadas,
Despedidas cantadas.
No limiar da paciência,
No desfalecer da inocência.
Irritante com suas tretas,
Personagem e suas letras,
Gravadas sobre a memória
Para quem goste da história.
Amizades foram corrompidas,
Corredores, alas interrompidas,
Sentimentos enxaguados,
Pensamentos molhados,
Olhares trocados
E tarde desviados.
Desavenças prematuras,
Mal cozidas por costuras.
Na linha da paciência,
Na corda da indecência,
No fio que pendura a relação,
A tesoura tem a sua tentação.
O sangue entra em ebulição,
Ferve e esvazia o coração.
...
Reabastece-se um orvalho,
Um paladar de sabor a alho,
É a culpa posta no pobre espantalho.
A necessidade de uma lamúria,
Entra em conflito com a fúria
Que desce a garganta em penúria
E enche o peito de trabalho.
Torna desconhecida a injúria.
Trepa pelos braços a solidão,
Golpeia a pele de lamentação,
Saceia em troca a maldição.
Nas trincheiras da paciência,
Nos confins da jovem carência,
O amigo que em sua ausência
Traga as boas-vindas com frequência.
Os pensamentos tornam-se secos,
Os sentimentos contornam os becos,
As desculpas terminam com os bonecos,
E frente-a-frente resolvem-se os certos.
Cacos quebrados são colados,
Das urnas seladas são os votos contados,
Novos desempenhos são lançados,
Novos laços são apertados,
Mas os mesmo fios são usados.
No convívio existem formigas,
Na amizade existem elefantes.
No desentendimento há hurtigas,
No reconciliamento há triunfantes.
No coração reina a adolescência.
Nos olhos brilha a experiência,
E na amizade paira a reverência.

O bater de asas de uma borboleta.

O suor arrefece o corpo e choca-o de arrepios friorentos. Nervos à flôr da pele, joelhos fracos, cabelo em pé e medo desfolegado. O silêncio não existe. No seu lugar, garras de guitarras, fortes bongos, vozes sopranas, afrontam pensamentos leves e míseros. O sangue ferve, a adrenalina descarregada no corpo consome-o. A suspiração aumenta, o peito treme de cada inspiração de odor a morte. As pernas mexem-se frenéticas e nem percorrem distâncias, o espaço encolhe e a claustrofobia dispara. O peso da gravidade é insopurtável. O grito encurralado na garganta sufoca-a por dentro durante a longa queda livre. Fracas e húmidas, as mãos não seguram cordas nem corrimão. Desconcentração total. Agoniado e descontrolado o coração bombea bombas aos ouvidos! As luzes eclipsam. Serras giram ruidosamente, os passos pesados aproximam-se, as correntes arrastadas pelo cimento ecoam no recinto fechado. Partem-se vidros. Gritos e choros. Clarões de disparos, richochetes e sons utrasónicos de balas. Tremores de terra e metais caindo violentamente nos telhados. Barulhos colusais de motores e explusões.

O rapaz

Esta é uma vez um rapaz, um rapaz que não gosta do seu primeiro nome, mas adora quem chame por ele.
Fica aborrecido por ter que adormecer todos os dias, e na hora de acordar sente-se insatisfeito com a coisa.
Ver o tempo passar é um luxo. O relógio é o seu inimigo.
Não alimenta o apetite para o apetite o alimentar a ele.
Primeiro ele expira, depois inspira, primeiro ele levanta-se, depois cai.
Possui tudo o que precisa mas não tem nada do que quer, existe uma coisa que busca e não existe nada que precise.
Guarda todas as pedras pelo caminho, mas não sabe construír castelos.
Quando vai à beira-mar imagina uma cidade, quando vai à cidade imagina um mar.
Doi-lhe a barriga quando se apaixona; apaixona-se quando lhe doi a barriga.
Tem a paciência de uma tartaruga e o nervosismo de uma lebre.
Come uma azeitona no fim de beber Coca-Cola, porque lhe disseram que a acetona descola.
Gosta de ver o fogo arder e a água borbolhar mas detesta ver os dois a brigar; é como ver um bombeiro bater num pirotécnico, não há fogo-de-artifício.
Odeia voltas mas ama reviravoltas.
Prefere ver tudo preto no branco porque o cinzento é a virtude.
Não gosta da Lua porque é mentirosa, não gosta do Sol porque não deixa olhar para ele, não gosta das estrelas porque não as pode contar, mas adora isto tudo porque fazem um músical perfeito.
Acha que uma pessoa com muitas ideias é um "ideota"!
Faz por conseguir tudo mas adia para amanhã para conseguir mais.
Tem pressentido que deve descobrir o dia perfeito quando perfeito foi o dia em que descobriu ter pressentido.
Inveja as asas das aves e aprecia as folhas de papel.
Ontem ficou passado, mas hoje recebeu um presente bom porque amanhã terá o futuro desejado.
Tem três mulheres na vida dele; uma com a qual não podia ter vivido, outra com a qual vive e a última com a qual não poderá viver sem.
Retifica que a letra X deveria estar no meio do nome dela, porque um pirata lhe disse que a cruz marca o tesouro.

O rapaz sente-se indesejado pelo desejo que tem de desejar o desejo dela. Pois com ela, o rapaz é capaz de gostar do primeiro nome, é capaz de adormecer e acordar feliz, passar o tempo em vez de o ver passar, é capaz alimentar o apetite de estar com ela, inspirar e só depois expirar, construir castelos, ter asas e viver.

Filipa



Um beijinho pra Filipa :D

A vida III

Parece ser mais fácil para mim continuar. Agora que prevejo o futuro, penso mais no presente. Viverei com ela para toda a minha vida. Verei o meu filho crescer. Levá-lo-ei ao seu primeiro dia de aulas, ao seu segundo e ao seu terceiro. Levá-lo-ei todos os dias. Sentirei cada vez mais a idade a passar, a mesma idade dos meus pais quando eu fui jovem. Levá-lo-ei aos aniversários dos primos. Trarei os primos aos nossos aniversários. Ensinarei o pequeno a nadar. Ensinarei a andar de bicicleta. Adoptarei um cãozinho. Plantarei uma árvore rara no jardim. Tentarei passar mais tempo em casa e menos no trabalho. Usarei os fins-de-semana apenas para a família. Mostrar-lhe-ei, ao pequeno, os cromos da minha infância e as músicas que ouvia. Pentear-lhe-ei o cabelo. Quando for mais crescido deixar-lhe-ei conduzir o carro dentro da propriedade. Deixá-lo-ei com os primos às sextas à noite para poder sair com a alada numa aventura romântica. Pagarei a carta de condução ao sobrinho mais velho. Verei a nova sonda espacial chegar a Marte. Assistirei à maior poluíção global. As brancas do cabelo concentrar-se-ão. Pintarei o cabelo. Pintarei o cabelo do pequeno para o mundial de futebol. Torceremos juntos pela selecção. Chorarei pela passagem dos meus pais. Adoecerei por um longo tempo. Fugirei de casa por umas noites e preocuparei a amada e o meu pequeno. Voltarei a casa, pedirei muitas desculpas. Desabafarei como nunca o fiz com ninguém. Abraçá-la-ei com toda a minha força. Serei reconhecido por alguns dos meus trabalhos artísticos. Comprarei um carro para o jovem. Será responsável. Levarei a ruiva até ao deserto. Mostrar-lhe-ei o céu nocturno. Dir-lhe-ei tudo o que sinto e o quanto me faz vivo. Convidarei a namorada do jovem para jantar em nossa casa para eu cozinhar. Visitarei o lugar dos meus pais e avós. Sentirei muitas saudades de todos. Reencontrarei muitos amigos. Alguns deles nunca mais os verei. O adolescente quererá o seu próprio apartamento. Viverá sozinho com a sua namorada. Viverei sozinho com a minha amada. Venderei a casa dos meus pais. Sentirei a falta das emoções que só a adolescência me oferecia. Verei o meu filho casar. Serei avô. Reunirei a família toda nos Natais, mas não será o mesmo. A minha irmã será recompensada pelos seus anos de serviço. Verei o meu filho adulto alistar-se a militar. Preocupar-me-ei cada vez mais com a idade. Verei a ruiva envelhecer ao meu lado e lembrar ela na sua adolescência. Muitos anos depois voltarei a ver o meu filho, enorme e saudável. Terei mais um neto. Igualzinho a mim, quando fui bebé. Reformar-me-ei. Deixarei de conduzir. Deixarei de pintar o cabelo. Ele cair-me-à. Encontrarei o meu guizo amarelo e guardá-lo-ei na arca do sotão. Celebrarei o meu penúltimo aniversário. Dois meses depois celebraremos os anos da nossa união. Passearei pela minha cidade natal por mais dois Natais. Começarei a esquecer datas. A esquecer pessoas. Deixarei de poder desenhar. As minhas mãos tremerão. Apenas a ruiva me as poderá firmar. Sentar-me-ei, cansado, nos bancos de jardim da cidade e verei os jovens correr. Não dedicarei o tempo com as mesmas experiências que me faziam sentir bem. A música não me relaxará nem me fará adormecer. Não rirei nem "nostalgirei" do mesmo modo. Não me poderei mimar com chocolates nem com o cabelo. Não necessitarei do silêncio para pensar, pois nem assim o conseguirei. No entanto, e sobretudo, dependerei ainda dela para continuar. Ficarei doente, tornar-me-ei inútil. Chegarei a um ponto da vida em que voltarei ao "aviãozinho". Deixarei de distiguir o sonho da realidade. Pela última vez, depois de muitas tentativas que falharei, conseguirei, por fim, dizer as palavras: "Não me arrependo da minha vida!". Terei o meu último aniversário junto da ruiva e do meu filho. O meu cabelo irá caíndo. A côr, irá desvanecendo. Darei por mim, um dia, a fechar os olhos pela primeira vez. Cuidarão de mim, dia a pós dia. Levar-me-ão pra outro lugar, para aquele odor de medicina. Não pararão no último dia de me beijarem. Dar-me-ão banho e cobrir-me-ão com um cobertor. O médico dirá: "Lamento imenso, mas não é tão saudável como era.". Sentirei um ar fresco entrando no meu peito, que me dará logo um arrepio.

A vida II

Não é fácil para mim continuar. Agora que lembro o passado, penso mais no futuro. Trabalharei até conseguir alguns dos meus objectivos. Continuarei ligado às pessoas que adoro, mesmo que pareça desligado de tudo. Ao vigésimo-quinto ano terei a idade suficiente para poder pedir empréstimos e comprar o meu automóvel. Viverei com os meus pais enquanto nos precisarmos mutuamente. Não terei namorada nem rapariga íntima na minha vida por muito tempo talvez. Divertir-me-ei com os meus amigos durante as férias e folgas. Passearei pela minha cidade natal por muitos Natais. A minha irmã terminará os estudos e encontrará um emprego. Serei genro. Serei tio. Irei ver os meus avós passarem de vida. Irei ver alguns tios mais velhos passarem de vida. O meu cabelo tornar-se-á grisalho. As primeiras brancas surgirão. Terei dinheiro para alugar o meu próprio apartamento. Perdir-me-ão para cuidar do meu sobrinho nos tempos livres e irei ter desejos de um filho. Conhecerei muitos mais amigos e amigas. Reencontrarei a miúda de infância dos olhos azuis. Dir-lhe-ei "olá" e seguirei a minha vida sem tentar lembrar. Anos mais tarde, o meu sobrinho irá entrar na primária e leva-lo-ei ao seu primeiro dia de aulas. Irei ensiná-lo a pintar, mas não nas paredes de casa. Aconselhar-lo-ei sobre o sexo feminino e as suas vantagens e desvantagens. Decidirei por fim comprar uma casa com jardim. Os meus pais reformar-se-ão. Irei visitá-los todos os dias. Passarei na rua e irei encontrar a mais bela das ruivas. Convidá-la-ei para um jantar em casa para eu cozinhar. Leva-la-ei ao cinema a ver um filme. Assistirei a piores desastres naturais na televisão. Serei padrinho de casamentos. Viajarei até ao deserto e realizarei a minha aventura de sonho. O meu corpo sentirá a idade a pesar. Passarei mais tempo com a amiga e leva-la-ei todos os dias a casa dela. Voltarei a preocupar-me com as roupas e pintarei o cabelo. Descobrirei os meus cromos do séptimo ano, poeirentos e fechados numa arca no sotão. E dentro, mais no fundo, o meu primeiro guiso amarelo, que mais parecerá acastanhado. Lavá-lo-ei e o guardarei na sala de estar. Depois de assentar todos os problemas financeiros construirei uma piscina no jardim traseiro. Passarei tardes na piscina com essa ruiva. Olharei para ela e tocarei na sua cara linda, dobrarei o cabelo macio para trás da orelha e sem pestanejar fixarei o olhar nos seus olhos castanhos-esverdeados, claros e brilhantes como os reflexos da àgua ao sol. Não a beijarei.
Irei sentir-me um pouco farto da vida, longa e monótona. Sentir-me-ei triste e desolado ao ver os meus pais envelhecerem cada vez mais. O meu sobrinho crescerá e acabará a primária. A minha irmã tererá um segundo filho, rapaz. Serei tio e babysitter pela segunda vez. Reflectirei. Terei que tomar a decisão mais importante da minha vida. Sem pensar duas vezes devolverei o meu sobrinho mais novo ao meu genro no seu trabalho e conduzirei com toda a velocidade até casa dela. O meu telemóvel tocará e ao pressionar o botão, atenderei e despistar-me-ei num cruzamento com outro veículo. Nascerei. Sentirei um ar fresco entrando no meu peito, que me dará na altura um arrepio. O médico dirá: "Parabéns, é um homem saudável". Ao meu lado, apertarei a mão dela com toda a minha força, enquanto ela me beija. Levar-me-á pra outro lugar, longe daquele odor de medicina. Cuidará de mim, dia a pós dia. Darei por mim, um dia, a abrir os olhos pela primeira vez. A côr, tudo colorido. Entenderei nesse momento que seria ela quem eu nessecitaria para continuar. Celebrar-me-á o meu trigésimo-quarto aniversário. Pela primeira vez, após muitas tentativas que falharei, conseguirei, por fim, dizer as palavras: "Amo-te!". Contar-lhe-ei a minha vida ao pormenor como nunca fiz com ninguém. Viveremos juntos. Com ela distinguirei o sonho da realidade. Voltarei ao trabalho. Farei todas as semanas uma surpresa diferente para ela. Retratar-la-ei com a minha melhor obra. Levar-la-ei a conhecer os meus pais. Deixarei de pensar no futuro. Passar-lhe-ei a chamar de amada.
Terei o meu maior desejo concretizado, um filho rapaz. Terá o meu guizo amarelo. Pintar-me-à as paredes da casa com as cores que eu lhe escolher. Verei o meu pequeno crescer, pegar sozinho na colher e transformar o "aviãozinho" numa estação espacial com slipspace. Assistirei como que à minha segunda vida com os meus próprios olhos. Dedicarei o tempo com as mesmas experiências que me fazem sentir bem. Dependerei da música para relaxar, mas, dela ao meu lado para adormecer. Dependerei do meu filho para rir e "nostalgiar". Dependerei de chocolate, mas mais, do cabelo dela para me mimar. Dependerei do silêncio para pensar. Sobretudo, dependerei dela para continuar.

A vida

Nasci. Senti um ar fresco entrando no meu peito, que me deu logo um arrepio. O médico disse: "Parabéns, é um menino saudável". Deram-me banho e enrolaram-me num cobertor. Não pararam no primeiro dia de me beijarem. Alimentaram-me. Levaram-me pra outro lugar, longe daquele odor de medicina. Cuidaram de mim, dia a pôs dia. Dei por mim, um dia, a abrir os olhos pela primeira vez. A côr, tudo colorido. Entendi naquele momento o que fazia aquele estranho ruído. Um estúpido de um guizo amarelo! Fui crescendo. O meu cabelo foi crescendo! Fui aprendendo. Celebraram-me o meu primeiro aniversário. Mais um guizo... Pela primeira vez, depois de muitas tentativas falhadas, consegui, por fim, dizer as palavras: "Quero mais!". Fui alimentando-me sozinho de colher e transformei o "aviãozinho" num jacto de multi-propulsores. Larguei a chupeta bem cedo. Manejava habilmente as minhas mãozinhas e decidi pô-las ao trabalho. Pintei fora das linhas, pintei o meu cabelo, escrevi letras novas, risquei as paredes todas. O meu pai falava que tinha muito talento para as artes. Fui para uma escola com infantário onde conheci mais pessoas pequenas como eu. Ensinaram-me as cores, as letras e os números. Matemática, dividi 1 por 2 e dei a outra metade do chocolate à miúda mais gira do infantário. Com ela distinguia bem as cores. O meu cabelo era preto e o dela laranja.. Alguns anos depois surgiu do nevoerio uma professora zangada e enfiou-nos noutra sala. "Esbufeteio-te, mas é para o teu bem", dizia ela. Eu escrevia o meu nome de olhos fechados, soletrava e "caligrafiava" suavemente. Calculava monstruosamente. Mas tudo o que me interessava era o desejoso recreio. Ela dava-me as mãos todos os dias, enquanto eu imaginava poder navegar nos seus olhos azul ciano. Infelizmente os quatro anos completaram-se. No entanto, mais tarde, anunciaram-me mais cinco anos de escolaridade. Não entendi a necessidade de transferência, pois nunca mais a vi... A minha irmãzinha finalmente nasceu. Estava curioso, como é que ela foi lá parar. O básico iníciou e foi passando, no quinto ano conheci alguns amigos, no sexto ano vivi dezenas de novas experiências, no séptimo coleccionava cromos dos jogadores da selecção, no oitavo participei num teatro e limpei as paredes de casa que a minha irmã riscou com os meus marcadores soltos no quarto. No nono a barba decidiu crescer na minha face. Como que saída de um filme de terror, a minha cara estava toda golpeada da lâmina de babear. Caramba! Passei a cuidar muito mais da minha imagem, principalmente do meu cabelo. Sentia-me cada vez mais adulto. O carro era na altura a minha maior ansiedade também. Após o baile de finalistas separamo-nos todos novamente, como na escola anterior. As férias foram as mais longas, mais longas que todas as anteriores. A roupa começou a ser uma preocupação para mim. O cabelo começou a ser uma preocupação para mim! As saídas à noite um problemas para os meus pais. Cafés, bares, rio, praia, campismo. E as férias terminaram. O secundário estava à porta. No primeiro dia que pisei a calçada da entrada da escola, petrifiquei. Ao fundo, a dois bancos de jardim para a esquerda, estava ela, de cabelo livre na brisa, a pele eram folhas de papel firmes e macias. Os olhos eram lindos, o infinito do céu aprisionado em duas esferas divinas. Se Deus existisse e vivesse no céu, ele vivia nos olhos dela. Enquanto me tentava mexer as campainhas tocavam. Um misto de sonho e realidade. Fui ter com ela e dei-lhe a minha mão. O namorado chegou e levou-a para longe de mim... Três anos passaram. Defendia a minha irmã quase todas as semanas na entrada da escola dela por causa de rapazes. Saí do secundário com centenas de amigos e uma dúzia de grandes amigos. Eram saídas todas as noites. Os melhores amigos. Conheci amigas diferentes, e diferentes. Aderi ao Hi5, ao Facebook e a tudo o quanto havia. Mas não sabia como sair do "labirinto". Dediquei tanto tempo a ela que nem aprendi como esquecer e "largar".
Desenvolvi o talento de retratar rostos. Arranjei um emprego e passei a comprar as minhas próprias roupas e jogos. A pagar as minhas saídas sem ter que pedir dinheiro aos meus pais todos os santos dias. Pobres deles, o que passaram, pior ainda que as paredes de casa riscadas. Mas as minhas saídas abrandaram e até pararam por muito tempo. Poucas vezes via os amigos. Desgastei-me com o trabalho e mal me alimentava. Melhorei e ultrapassei aquela fase. Agora dedico o tempo com as mesmas experiências que me faziam sentir bem. Dependo da música para relaxar e adormecer. Dependo de um amigo para me rir e "nostalgiar". Dependo de um chocolate e do cabelo para me mimar. Dependo do silêncio para pensar. Sobretudo, dependo dela para continuar.
 

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