Rafael Braga

A vida II

Não é fácil para mim continuar. Agora que lembro o passado, penso mais no futuro. Trabalharei até conseguir alguns dos meus objectivos. Continuarei ligado às pessoas que adoro, mesmo que pareça desligado de tudo. Ao vigésimo-quinto ano terei a idade suficiente para poder pedir empréstimos e comprar o meu automóvel. Viverei com os meus pais enquanto nos precisarmos mutuamente. Não terei namorada nem rapariga íntima na minha vida por muito tempo talvez. Divertir-me-ei com os meus amigos durante as férias e folgas. Passearei pela minha cidade natal por muitos Natais. A minha irmã terminará os estudos e encontrará um emprego. Serei genro. Serei tio. Irei ver os meus avós passarem de vida. Irei ver alguns tios mais velhos passarem de vida. O meu cabelo tornar-se-á grisalho. As primeiras brancas surgirão. Terei dinheiro para alugar o meu próprio apartamento. Perdir-me-ão para cuidar do meu sobrinho nos tempos livres e irei ter desejos de um filho. Conhecerei muitos mais amigos e amigas. Reencontrarei a miúda de infância dos olhos azuis. Dir-lhe-ei "olá" e seguirei a minha vida sem tentar lembrar. Anos mais tarde, o meu sobrinho irá entrar na primária e leva-lo-ei ao seu primeiro dia de aulas. Irei ensiná-lo a pintar, mas não nas paredes de casa. Aconselhar-lo-ei sobre o sexo feminino e as suas vantagens e desvantagens. Decidirei por fim comprar uma casa com jardim. Os meus pais reformar-se-ão. Irei visitá-los todos os dias. Passarei na rua e irei encontrar a mais bela das ruivas. Convidá-la-ei para um jantar em casa para eu cozinhar. Leva-la-ei ao cinema a ver um filme. Assistirei a piores desastres naturais na televisão. Serei padrinho de casamentos. Viajarei até ao deserto e realizarei a minha aventura de sonho. O meu corpo sentirá a idade a pesar. Passarei mais tempo com a amiga e leva-la-ei todos os dias a casa dela. Voltarei a preocupar-me com as roupas e pintarei o cabelo. Descobrirei os meus cromos do séptimo ano, poeirentos e fechados numa arca no sotão. E dentro, mais no fundo, o meu primeiro guiso amarelo, que mais parecerá acastanhado. Lavá-lo-ei e o guardarei na sala de estar. Depois de assentar todos os problemas financeiros construirei uma piscina no jardim traseiro. Passarei tardes na piscina com essa ruiva. Olharei para ela e tocarei na sua cara linda, dobrarei o cabelo macio para trás da orelha e sem pestanejar fixarei o olhar nos seus olhos castanhos-esverdeados, claros e brilhantes como os reflexos da àgua ao sol. Não a beijarei.
Irei sentir-me um pouco farto da vida, longa e monótona. Sentir-me-ei triste e desolado ao ver os meus pais envelhecerem cada vez mais. O meu sobrinho crescerá e acabará a primária. A minha irmã tererá um segundo filho, rapaz. Serei tio e babysitter pela segunda vez. Reflectirei. Terei que tomar a decisão mais importante da minha vida. Sem pensar duas vezes devolverei o meu sobrinho mais novo ao meu genro no seu trabalho e conduzirei com toda a velocidade até casa dela. O meu telemóvel tocará e ao pressionar o botão, atenderei e despistar-me-ei num cruzamento com outro veículo. Nascerei. Sentirei um ar fresco entrando no meu peito, que me dará na altura um arrepio. O médico dirá: "Parabéns, é um homem saudável". Ao meu lado, apertarei a mão dela com toda a minha força, enquanto ela me beija. Levar-me-á pra outro lugar, longe daquele odor de medicina. Cuidará de mim, dia a pós dia. Darei por mim, um dia, a abrir os olhos pela primeira vez. A côr, tudo colorido. Entenderei nesse momento que seria ela quem eu nessecitaria para continuar. Celebrar-me-á o meu trigésimo-quarto aniversário. Pela primeira vez, após muitas tentativas que falharei, conseguirei, por fim, dizer as palavras: "Amo-te!". Contar-lhe-ei a minha vida ao pormenor como nunca fiz com ninguém. Viveremos juntos. Com ela distinguirei o sonho da realidade. Voltarei ao trabalho. Farei todas as semanas uma surpresa diferente para ela. Retratar-la-ei com a minha melhor obra. Levar-la-ei a conhecer os meus pais. Deixarei de pensar no futuro. Passar-lhe-ei a chamar de amada.
Terei o meu maior desejo concretizado, um filho rapaz. Terá o meu guizo amarelo. Pintar-me-à as paredes da casa com as cores que eu lhe escolher. Verei o meu pequeno crescer, pegar sozinho na colher e transformar o "aviãozinho" numa estação espacial com slipspace. Assistirei como que à minha segunda vida com os meus próprios olhos. Dedicarei o tempo com as mesmas experiências que me fazem sentir bem. Dependerei da música para relaxar, mas, dela ao meu lado para adormecer. Dependerei do meu filho para rir e "nostalgiar". Dependerei de chocolate, mas mais, do cabelo dela para me mimar. Dependerei do silêncio para pensar. Sobretudo, dependerei dela para continuar.

1 comentários:

sandra disse... @ 23 de julho de 2010 às 17:39

tambem tenho direito a um desenho?nao sabia que desenhavas tao bem!

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