Rafael Braga

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 7
_____________________________________________________________________________________

- Noite 10 de Janeiro -

     - Deixa-o aqui - pediu Raphael, enquanto Gonçalo abrandava o carro - Saltarei este muro e regressarei em dez minutos no máximo. Será esse o tempo total. Atentos, rapazes?
     - Sim.
     - Sim - respondeu Gonçalo ligeiramente atrasado.

     Raphael tocou em cada ombro dos rapazes com ambas as mãos e saiu do carro, pousou a mochila aos seus pés e inclinou-se sobre a janela aberta da porta. Calado, levantou o indicador e abanou o pulso.

     - Aprovo em como ele quererá trazer alguns itens pessoais, por isso estejam atentos ao meu assobio.
     - Como vai convencer um rapaz de quinze anos a fugir de um orfanato, consigo? - perguntou Gonçalo.
     - Sou assim tão feio e intimidante?
     - Quero dizer, o que lhe dirá que o fará vir? Ele nem o conhece.
     - Por não me conhecer, talvez eu acredite que ele fará o mais certo para si mesmo - respondeu Raphael levantando-se - A rua ficará escura, estejam atentos e quietos.

     Raphael agarrou a mochila e arremessou-a para lá do muro alto. Em dois passos correu em direcção da parede, saltou e agarrou-se com as mãos, flexionou os braços no topo e avançou para o outro lado num instante.

     - Fábio, o que sabes sobre isto? - perguntou Gonçalo depois de ter assistido à manobra.
     - Tanto como tu, meu.
     - Que terá este rapaz, "especial", tanto interesse para o Raphael?
     - Bastante - sublinhou em voz alta. Estava à vista.
     - O que sabes tu? Conta-me!
     - Não sei o suficiente. Apenas sei que ele é como tu,... - disse Fábio e citando a palavra de Gonçalo - ..."especial".
     - Ok. Mas porquê?
     - Porquê o quê?
     - Porquê aqui? Agora?
     - Não sei - respondeu, em tom de ofendido.

     Fábio encostou-se no banco e ligou o rádio num volume quase em silêncio. Ouviram o som dos grilos e da música durante dois minutos. Então, voltou a falar.

     - Não é a primeira vez que ele faz isto.
     - Como assim?

     A rua apagou-se por secções e por completo. Casas e edifícios em seu redor ficaram sem electricidade. A única e fraca claridade provinha do céu, da lua. Tudo o resto era escuridão.

     - Foi Raphael quem me sacou deste orfanato há uns meses atrás. Na noite anterior, antes de nos termos conhecido. - continuou Fábio.
     - Na noite anterior em que eu fugi do Hospital? Nunca me contaste...
     - Sim... Nem tinha razão para contar, não percebi isso na altura.

     Gonçalo pensou por alguns segundos.

     - Espera lá - reflectiu - O que fazias então na minha casa, ou no que restava dela, o que fazias lá? Foi ele?
     - Não. Não - respondeu Fábio - Não teria feito isso.
     - Mas o que te dá tanta certeza que não o fez por minha causa?
     - Porque ele não te conhecia. Fui eu quem te apresentei a ele, lembras?
     - Sim... Ok - Gonçalo recordou - Lembro da cara de espanto dele, foi arrepiante ao início.
     - Pois. Mas ele já tinha conhecido algumas pessoas com "dons" antes.
     - Ah?
     - É o que ouviste, meu. Ele já tinha conhecido algumas antes, contou-me hoje.
     - Algo não bate certo aqui.
     - Porque dizes isso? - questionou Fábio com um ar surpreso.

     Os dois olharam para o relógio. Acenaram com a cabeça apontando para fora e saíram do carro. Encostaram-se, sempre atentos e cuidadosos, ao muro e esperaram um pouco mais.

     Fábio tremeu.

     - Acho que me arrepiei na espinha...
     - Ele nunca nos contou nada sobre isto - afirmou Gonçalo.
     - Nós nunca perguntamos.
     - Ok, mas não sabíamos. tudo. E agora este rapaz? Como irá este rapaz ajudar-me a entender o que aconteceu no dia do incêndio da minha casa? - perguntou.
     - Que outro tipo de dom terá ele? Aliás? Que outro "dom" conhecemos?
     - Além do meu, mais nenhum - disse Gonçalo, encostando-se ao muro.

     Um assobio quebrou a conversa. Era o sinal de Raphael.

     - Se o Rapahel me tirou deste orfanato e agora...
     - ...está a tirar este rapaz "especial"? - concluiu Gonçalo ao agarrar uma mochila vinda do outro lado do muro.

     Os dois olharam-se interrogados. O rosto de Fábio petrificou. Agarrou também outra mochila.

     - Não nos vamos precipitar. Falaremos com o Raphael depois - terminou Gonçalo.

     Do topo do muro surgiu o jovem rapaz. De seguida, Raphael, que o agarrou e desceu com ele ao colo num salto olímpico. Não tinham tempo para apresentações. Entraram no carro e Gonçalo arrancou na noite.

     - Gonçalo, leva-nos para o Porto - ordenou-lhe Raphael.
     - Para o Porto? - perguntou surpreso o rapaz.

     Gonçalo não questionou. Acelerou a fundo, conduzindo como um maluco. Fábio levantou apenas uma sobrancelha.

     - Para o Porto, de novo, acabei de chegar!
     - Lá se foram as tuas "férias" - sorriu Gonçalo.
     - Não vejo nada de diferente no rapaz - murmurou Fábio, que seguia do seu lado.
     - Porquê? Em mim vês?

     Fábio revirou os olhos. Estupidez de suposição. Continuou a ouvir a conversa entre Raphael e o rapaz que seguiam nos bancos traseiros.

     - Raphael? É o seu nome? - perguntou o rapaz.
     - Sim.
     - O senhor também vê espíritos como eu?

     Gonçalo e Fábio olharam-se pasmados, "Espíritos?", pensaram em sintonia. A conversa desenrolava-se cada vez mais. Gonçalo abrandou a condução para a ouvir com melhor atenção.

     - Não pode ser - negou, descrente.

0 comentários:

Enviar um comentário

 

Seguidores