Rafael Braga

O efeito do defeito - Gaspar

Parte 7
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- Noite 10 de Janeiro -

     Todo o Orfanato estava envolto de escuridão. Todos pareciam dormir descansados, ninguém havia dado um alarme. Gaspar e Samuel permaneciam no quarto. Samuel dormia encostado na cama. Gaspar entrou em pânico. Aproximou-se num salto para junto da janela, dali olhou até onde os seus olhos lhe permitiam ver. Não era apenas a rua que havia ficado sem electricidade, mas sim dezenas de quarteirões no centro. No entanto, o seu quarto ainda estava iluminado por uma luz natural. Era a mesma nuvem branca, agora iluminada, que ainda pairava sobre Sam.

     - Que raio! - praguejou Gaspar, "Que será isto?"

     Outros pensamentos habitavam e manifestaram-se na mente de Gaspar. "Será ele?", "Será que aquele homem estava a falar tão a sério?", Gaspar matutou numa hipótese. Uma antiga ideia, a de fugir do Orfanato e ter uma vida mais livre, acompanhou-o por muitos meses, mas sem nunca ter tido uma oportunidade real. Gaspar interrogou-se, "Fugirei com ele? Será de confiança? Que me acontecerá depois?"

     Ao fundo da rua ouviam-se cães ladrarem e uivarem. Carros buzinando. E o tempo não parava. Gaspar nem se havia apercebido que a luz que Samuel emitia desfalecera lentamente, desaparecendo na escuridão. A escolha estava nas suas mãos. "Vou ou fico?"

     - "Gaspar?" - falou uma voz trémula e aguda.

     Gaspar reconheceu-a perfeitamente, o que não fazia sentido nenhum. Era a mesma voz que ouvira de manhã, da rapariga desconhecida que havia morrido na cantina. Olhou para a janela e ali estava, em pé, com a mesma roupa queimada e o corpo desfigurado: uma pequena menina translúcida. Gaspar engoliu em seco e tentou relaxar, controlando a respiração.

     - "Gaspar..." - disse a pequena movendo o braço gentilmente, chamando-o.
     - Quem és tu? E... como vieste aqui ter se morreste na cantina?

     Gaspar tremia. O aquecimento estava desligado por alguns minutos mas o frio depressa se fez sentir. Esperava nervoso pela resposta da menina. Reflectiu.

     - Como sabes o meu nome? - perguntou numa voz pacífica.
     - "Não importa quem eu sou, agora." - respondeu, sorrindo - "Foi o Raphael que me pediu para te chamar, agora percebo."

     Gaspar sentiu confusão das palavras da menina. Contudo, a dúvida fora esclarecida, Raphael estava por perto para o buscar. A primeira impressão que Gaspar entendera fora que aquele homem também deveria conseguir falar com os espíritos. Isso bastou para convencê-lo.

     A janela do quarto de Gaspar e de Samuel situava-se no primeiro andar. "Por onde irei fugir?", perguntou-se.

     - Gaspar! - sussurrou uma voz vinda do exterior.

     Gaspar aproximou-se cautelosamente até perto da janela, onde a menina se mantia curiosa e não tirava a vista de cima dele. Num gesto automático, Gaspar tentou tocar na menina, algo parecido, que havia feito há algum tempo atrás com um outro espírito, mas sem êxito qualquer. Espreitou para baixo. Encostada à parede das traseiras, uma escada de madeira, propriedade do Orfanato, elevava-se até à janela.

     - Gaspar! A decisão é tua. Agora sabes do que sou capaz, também.

     Gaspar hesitou por breves segundos. Repensou em tudo, tentou repensar em tudo. Nada mais fazia mais sentido, senão fugir com aquele desconhecido. Olhou de canto para a menina, mais uma vez, ela sorriu-lhe. Virou-se para o interior e agarrou duas mochilas. Com cuidado e sem fazer muitos ruídos, pegou em algumas roupas e fechou a mala. Pegou no seu computador portátil e na bateria e colocou-o na segunda mochila. Junto à janela, elevou as mochilas. No terreno, Raphael acenou em afirmação. Atirou as mochilas, uma de cada vez. Gaspar olhou pela última vez para o interior do seu quarto. Samuel dormia sem preocupações. Queria despedir-se do amigo como deveria de ser, mas teria que ficar para mais tarde.

     Respirou fundo e voltou-se para a janela. A menina, que num segundo estava no interior do quarto, estava no seguinte lá em baixo, ao lado de Raphael. Gaspar equilibrou-se no peitoral da janela e agarrou-se às escadas de madeira. Em segundos desceu.

     - E agora? - perguntou Gaspar.

     A menina desaparecera. Raphael agarrou as escadas e atirou-as para o outro lado do jardim sem qualquer esforço. Os dois correram até ao muro, junto de uma grande torre de distribuição de electricidade. Pegaram numa mochila pousada e guardaram uma tesoura e uma lanterna ainda ligada. Raphael colocou-a ao ombro junto da outra mochila de Gaspar e fechou a caixa de distribuição.

     Raphael emitiu um assobio breve, atirando de seguida uma mochila e depois outra. Esticou a mão para Gaspar em busca da última mochila.

     - Esta contem o meu portátil, eu levo-a comigo - disse Gaspar, agarrado à mochila.
     - Tudo bem - sorriu Raphael.

     O muro elevava-se cerca de dois metros e meio. Raphael fez sinal com as mãos e uniu-as ao nível dos joelhos de Gaspar, que encaixou o seupé esquerdo e trepou até ao cimo da parede. Sem entender como, Raphael velozmente subiu o muro e agarrou-o, saltando para o outro lado do muro com ele ao colo. Gaspar abriu os olhos e ao seu lado haviam mais dois rapazes que seguravam as mochilas.

     Todos entraram no carro preto. A noite continuava calma, ao contrário da pulsação de Gaspar que se assemelhava a um sismógrafo durante um terramoto na escala máxima. O rapaz mais velho conduzia, enquanto que o mais novo, um tanto familiar para Gaspar, seguia no lugar do passageiro. Raphael seguia atrás com ele.

     - Gonçalo, leva-nos para o Porto - ordenou o homem.
     - Para o Porto? - abismou-se Gaspar.

     Dentro do carro, ouviam-se murmúrios entre os rapazes.

     - Passaremos lá esta noite, em minha casa. É mais seguro. Não te preocupes - apaziguou Raphael, olhando-o nos olhos com um sorriso maduro.

     Gaspar não sabia o que estava a sentir no momento, um misto de nervosismo e desconforto com a situação, preocupação para com o amigos que deixara para trás, algo que o poderia facilmente leva-lo a arrepender-se. Não queria pensar nisso. Haviam questões a serem colocadas. Colocou o cinto, devido à condução agressiva, e reencostou-se com segurança no banco.

     - Raphael? É o seu nome? - perguntou, não envergonhado, receoso.
     - Sim.
     - O senhor também vê espíritos como eu?

     Os rapazes tornaram-se automaticamente mudos. Um deles ainda olhou para trás. Raphael sorriu com os lábios e acenou em negação.

     - Mas consegue falar com eles - afirmou Gaspar - Aquela menina falou-me sobre si.
     - É verdade. A tua capacidade é deveras mais desenvolvida que a minha. Eu apenas consigo comunicar-me com ele, mas tu, tu consegues mais que isso.
     - Consigo vê-los, sim - concluiu Gaspar.
     - Conheces a menina?
     - Não. Mas já havia visto antes, esta manhã na minha escola, depois do incêndio.

     Raphael posicionou-se no banco para conversar abertamente com Gaspar.

     - Diz-me, o que não te fez sentido?
     - Sobre a menina? O facto de ela não se agarrar apenas ao local onde morreu, mas conseguir mover-se para outro lugar, como no Orfanato, há minutos.
     - Como sabes isso?
     - Porque foi assim que eu percebi com os meus pais...

     Gaspar desviou o olhar por momentos. O interior do carro permanecia em silêncio, apenas se ouvia a conversa dos dois. Raphael levantou uma questão.

     - E se alguém morrer e não se agarrar apenas ao lugar?
     - Agarrar-se a uma pessoa viva? A si? - Gaspar ponderou - É a primeira vez que vejo acontecer.
     - Claramente és um rapaz brilhante. Teremos muito para falar.

     Gaspar sentiu uma curiosidade imensa a desvendar-se. Nada mais parecia importar senão aquela conversa.

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