Rafael Braga

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 3
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- Há cinco meses atrás: -

     A vida de Gonçalo dependia da velocidade dos bombeiros. A ambulância freou à porta das emergências, tocando as sirenes descontroladamente. O condutor saiu e abriu a porta traseira. Um outro auxiliar destrancou a maca, fazendo-a rolar pelos carris para fora do compartimento do veículo. Rapidamente se dirigiram para o interior do Hospital. Da ambulância saiu também a Doutora Célia, despertada pelo incidente.

     - Mas que estado, Santo Deus! Ainda... - a enfermeira horrorizou-se.
     - Recurremos aos primeiros socorros! Mas... - disse o auxiliar insatisfeito.
     - Esqueçam a triagem! - interrompeu um médico cirurgião - Levem-no já para o interior!

     A acompanhar a ambulância nas estradas, dois polícias preparavam-se para identificar Gonçalo. O médico interviu de imediato, entrando de seguida no bloco operatório.

     - Mãe - gritou Mateus.
     - Mateus... - Célia entristeceu ainda mais vendo o seu filho em sofrimento.

     Mateus não era capaz de dizer uma palavra que expressasse a perda que havia ocorrido.

     - Mãe - disse soluçando - Os pais dele...
     - Calma - Célia abriu os braços - Vem cá.

     Os dois abraçaram-se. Não havia consolo possível.

     Gonçalo lutava contra a vida. O seu ritmo cardíaco elevava-se para além do limite. As enfermeiras apenas podiam estancar o máximo possível de sangue, enquanto que o cirurgião tentava restaurar e salvar todos os orgãos vitais. Passaram horas e horas.

     Na manhã seguinte, o cirurgião saiu do bloco, sem grandes espectativas no seu rosto enrugado, cansado de uma das suas maiores lutas contra a morte.
     - Dr. Célia? - disse ele - Fizemos tudo o possível. Felizmente conseguimos equilibrar o seu estado.
     - Graças a Deus - respirou fundo - Muito obrigado, Dr. Jorge.
     - O jovem permanecerá em cuidados intensivos. Estimo, na minha opinião, que a recuperação será dolorosa e intemporal. Ele poderá ficar neste Hospital até restabelecer a consciência. Será mais tarde transferido para a Clínica de Recuperação.
     - Entendo. Eu mesma tratarei da transferência.
     - Desculpe perguntar, é seu famíliar?
     - Os seus pais eram amigos da minha família.
     - Lamento imenso.

     Célia voltou a sentar-se ao lado de Mateus, que dormia sobre duas cadeiras.

     - Mateus?

     Como se não estivesse a dormir, Mateus levantou-se num segundo.

     - Como está ele? - perguntou, esfregando a cara.
     - Neste momento, em recuperação - levantando-se - Vamos para casa.


- Dez dias mais tarde -


     - É fenomenal como a capacidade de regeneração deste jovem é acelerada. Se os meus cálculos estiverem correctos, ao fim de quatros dias estará totalmente sarado. - afirmou um médico alto e robusto.

     Gonçalo permanecia inconsciente. O seu corpo estava ainda ligado e engessado nas zonas mais críticas. Vários aparelhos monitorizavam e detalhavam cada processo de recuperação, batimento cardíaco, níveis de CO2, temperaturas e outros sinais vitais.

     No mesmo quarto encontravam-se mais dois médicos, o cirurgião Dr. Jorge e uma dermotologista.

     - É naturalmente impossível! - reafirmou Dr. Jorge.
     - Recapitulemos - disse o médico - O nosso paciente deu entrada no Hospital há dez dias. Encontrava-se inconsciente e com uma perda de sangue de quase cinquenta por cento. Queimaduras de segundo e terceiro grau em dois terços do corpo. Derivado da queda de um segundo andar partiu quatro costelas, o fêmur esquerdo foi quebrado em três zonas, os pulsos totalmente estilhaçados e os cinco centímetros de corte profundo no abdominal superior e no pulmão esquerdo que lhe causaram desmaio instantâneo. Sejamos realistas, este rapaz deveria ter sido considerado morto no local do acidente.
     - Impressionante - admirou a dermotologista - Os dados provam realmente. Não estamos a falar de um corpo vulgar. A percentagem de regeneração de tecidos deste indivíduo atingiu os duzentos por cento em cinco dias. Mas estou notavelmente surpresa com os mesmo dados em relação à composição óssea. Nunca me deparei com algo assim. Está praticamente curado!
     - Haverá explicação? - perguntou o Dr. Jorge.
     - Haverá, sim - o médico sorriu confiante - Muito obrigado pela vossa colaboração.

     Sozinho no quarto com Gonçalo, o médico pegou no telefone e ligou.

     - Está tudo preparado. Daqui a quatro dias serei capaz de correr a transferência do meu paciente. Já tens o equipamento a postos? - ouviu-se um silêncio que alterou o seu tom - Então trata disso! Não quero que nada corra mal. Poderemos ter em mãos uma cura que poderá salvar milhares! - o médico olhou pensativo e aproximou-se de Gonçalo - Este rapaz não tem ninguém. Perdeu toda a família. Ninguém sentirá a falta dele.

     Desligou o telemóvel. Reajustou o monitor por cima da cama de Gonçalo e saiu do quarto.

     Devagar e receoso, Gonçalo abriu os olhos. Tentou mexer as mãos mas elas não lhe respondiam. Desistiu sem uma segunda tentativa. Sem poder fazer algo, pensou. Pensou na conversa que havia ouvido do médico ao telefone. Aos poucos as suas memórias entravam no seu pensamento. O fumo. As chamas. Os seus pais e a sua irmã. O medo. E a queda. Gonçalo estava só. O desespero tomou conta dele.

     Um dos aparelhos tocou cada vez mais intermitente. Uma infermeira entrou no quarto.

     - Minha... Nossa! - balbuciou ao entrar.

     Tentou falar mas a sua garganta doía de queimaduras. As ligas em volta da sua cara faziam a pele por baixo formigar irritavelmente.

     Logo de seguida, o médico entrou. Atrás dele, Dr. Jorge seguiu-o. Não queria acreditar que havia acordado em tão pouco tempo.

     - Sê bem-vindo - alegrou-se Dr. Jorge. Não queria acreditar no que estava a ver. A sua carreira médica nunca lhe havia oferecido tal surpresa milagrosa. Nada fazia sentido, com tudo.
     - Como te sentes? - perguntou o médico misterioso.

     Dr. Jorge aproximou-se de Gonçalo.

     - Sou o director deste Hospital, deixa-me só ver como estás - colocou a sua mão sobre a cabeça de Gonçalo e abriu-lhe a boca cuidadosamente - Como previa, o fumo quente carbonizou grande parte das paredes da garganta. Voltar a falar talvez leve mais tempo.
     - Trataremos de ti o mais rápido possível, meu rapaz - sorriu o médico alto.

     Gonçalo observou de canto, hipnotizado pelas luzes que lhe batiam nos olhos. Sentiu o perigo no rosto do médico mais novo. Não sentia confiança nas suas palavras. Precisava ver alguém conhecido. Alguém em quem confiasse. Um amigo. O seu amigo Mateus.

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