Rafael Braga

O efeito do defeito - Gabriela

Parte 5
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- Manhã 10 de Janeiro -

     O autocarro estava empilhado de gente. Por fim, parou na última paragem. Todos desceram. Na rua, as pessoas deslocavam-se para os seus empregos. Crianças para as suas escolas. A caminho do seu emprego, Gabriela parou num café com esplanada.

     - Bom dia!

     Todos os dias tomava o seu pequeno-almoço naquele café, a caminho da livraria, ambas situadas no centro da cidade. Cumprimentou o seu recém amigo e funcionário de mesa, ao sentar-se na sua preferida, que lhe respondeu com um gesto de bom dia.

     - (Como estás?) - perguntou o seu amigo servindo-o à mesa.
     - Vejo que andas a praticar - sorriu Gabriela - Bem. Estou apressada hoje. Atrasei-me em casa.
     - Sempre, a, mesma, tu. Sim, ando, a, praticar.
     - Fico contente por saber - disse Gabriela, sorrindo mais uma vez.
     - Logo, queres, sair? Tenho, o, resto, do, dia, livre.
     - Sim, claro. Hoje também saiu da livraria mais cedo. Depois falamos.

     Tomou o seu café e o seu bolo preferido. Despediu-se do seu amigo e saiu contente pela rua.

     Gabriela adorava o seu trabalho. Há dois meses que trabalhavacomo fúncionária na livraria. Era um lugar calmo e pacífico, visitado por jovens estudantes e também idosos à procura de um passa-tempo. O seu trabalho era simples. Apenas preencher requisitos e arrumar livros nas prateleiras indicadas. E pagavam bem. Com tudo, ainda podia ler e aproveitar um livro ou outro para si própria nos tempos livres e na sua pausa para o almoço. Dispunha também de uma secretária, decorada com os seus objectos e pertences. Era um trabalho mesmo bom para part-time.

     Por vezes, aconteciam um mal entendido ou outro. Alguns embaraços também. Mas todos os dias, Gabriela habituava-se. Durantes dois anos o fizera na sua vida. Habituar-se.

     - Olá. Quero levar este livro - falou um rapaz aproximando-se do balcão.

     Distraída com a catalogação de alguns livros apercebeu-se do rapaz. Era alto, bem vestido e giro. O mesmo rapaz que se tornava habitual há alguns dias.

     - Desculpe?
     - Quero requisitar este livro - repetiu, escapando-lhe um riso matreiro do canto da boca.
     - Requisitar? - perguntou, parecendo-lhe ter percebido.
     - Sim.

     Levantou a mão e ele entregou-lhe o livro e o cartão de identidade. Enquanto ela preparava a folha para preencher o rapaz debruçou-se sobre o balcão.

     - Gostavas de ir tomar um café, comigo?

     Mais uma vez, Gabriela não acompanhou o que o rapaz lhe falou.

     - Desculpe... - nesse momento sentiu embaraço. Olhou os lábios do rapaz esperando que ele repetisse.
     - Perguntei se querias sair para tomar um café comigo - repetiu, delicadamente.
     - Não posso, tenho planos hoje - respondeu, tendo percebido e sentindo-se mais embaraçada.

     O rapaz levantou-se do balcão. Gabriela entregou-lhe uma cópia da folha e o livro com o B.I. O rapaz ainda hesitado voltou-se para o balcão. Sobre um dos lados havia uma informação.

     "Funcionário com deficiência auditiva"

     Gabriela reparou.

     - "Onde eu me ia meter... Surda... Volto amanhã... para devolver o livro..."

     Gabriela "escutou", entre intervalos e outros pensamentos.

     O rapaz saiu sem olhar para trás. Sozinha entre as pessoas na livraria, Gabriela sentiu-se enclausurada com o silêncio e a tristeza. Não era mais frustração. Levantou-se, correndo para a casa de banho.

     Chorou de vergonha e dor...

     A hora de almoço divagarou sobre os minutos contados. No telemóvel havia uma mensagem.

     "Afinal vão precisar de mim aqui no café. Como já não tenho a tarde livre não vamos poder estar juntos. Desculpa. Talvez amanhã. Beijo."

     Gabriela guardou o telemóvel sem responder. O seu dia de trabalho terminava numa hora. Só lhe restava ir para casa.

     Ao terminar as arrumações finais na livraria, trancou a porta de entrada e seguiu para a paragem de autocarros.

     - "Atrasado... o autocarro... Estou farto de esperar... Oh, é tão bonita... porque será que olha para mim?..."

     Gabriela desviou o olhar. Fechou os olhos para se concentrar. Cada vez mais se tornava difícil de controlar. Por vezes "escutava" outras pessoas sem se aperceber. Fazia-lhe doer a cabeça. Por fim o autocarro chegou. Entrou e sentou-se ao fundo nos últimos lugares vagos. Não podia continuar naquele estado. Pensou. Estar triste e envergonhada desconcentrava-a mais.

     - Soraia? Estás cá? - chamou, ao chegar a casa. Partilhavam a casa por conveniência. Mas partilhavam segredos por amizade. Alguns segundos de silêncio exaltaram Gabriela.
     - "Estou no meu quarto... Vem, eu... ver televisão..."

     Dirigiu-se e entrou no quarto.

     - "Que se passa...? Gabi... Conta-me... Estás triste..." - pensou a amiga.

     Gabriela apenas se deitou sobre a cama. Soraia levantou-se para se chegar perto e acariciar-lhe com mimos. Sabia que o seu dia não lhe tinha corrido bem.

     - "Vamos sair... tomar qualquer coisa... café... não chores..."

     Passando a sua mão na cara, limpou as lágrimas.

     - Porque é que as pessoas me tratam indiferente por eu ser surda? E no entanto, sei às vezes o que elas não me dizem... Sinto-me uma porcaria! Que raiva! - Gabriela abafou o seu choro na almofada...

     Soraia pousou-lhe a mão no seu cabelo escuro.

     - "Não percebo... o que passou... não queria que chorasses mais..."

     Gabriela baixou-se novamente sobre a almofada. O eco de voz fazia-lhe doer dentro da cabeça.

     - Preciso de dormir...
     - "Dormir já?... Ainda é cedo... Quatro da trade... e esta cama é minha... quer dizer... desculpa... oh, não me "escutes" por favor..."

     Gabriela levantou-se da cama. Esfregou a cara e o cabelo para trás.

     - Não te preocupes - disse - Amanhã estarei melhor - e sorriu em silêncio.

     No seu quarto, Gabriela deitou-se sobre a sua cama. Pegou no livro sobre a mesinha do lado direito e começou a ler para si. Ao mesmo tempo que lia pensava no que lhe tinha aocontecido. Parou de ler.

     - Soraia, vou sair! - gritou ao passar pela porta da rua.
     - "Alegra-te" - "ouviu".

     Atravessou a rua até ao parque. Sentou-se num dos bancos de jardim e fechou os olhos. O ar no seu rosto era agradável. O dia era bonito. Ao abrir-los, observou cada uma das pessoas que passavam por si.

     - "Ainda tenho... pagar mais umas contas..."
     - "Não me lembro... Carro... casa... trabalho..."
     - "Estou tão... atrasado... Porra..."
     - "Esquerda... direira... esquerda... direita..."

     Num banco à sua frente, do outro lado da passagem, sentou-se uma rapariga, vestida de branco e azul. O seu rosto era triste e fatigado.

     - "Cansada... Sentida... Não aguento... Não consigo controlar isto..."

     Gabriela continuou a olhar, com mais atenção.

     - "Não consigo... arranjar uma maneira... não sei como fiz... atrás no tempo..."

     Gabriela não entendeu. Os pensamentos não eram algo que se podesse ouvir com clareza. Eram demasiados rápidos para serem acompanhados. E por vezes nem faziam sentido.

     Pensou para si própria que não era a única com um problema. Toda a gente tinha o seu. Contar a alguém o problema poderia piorar, pois nem toda a gente possuia os mesmo pensamentos, nem os mesmos problemas. Seria algo com que teria que viver sozinha. Pensando melhor, lembrou Soraia, a sua melhor amiga. E como Soraia a conhecia e a tratava como uma verdadeira amiga.

     - "Tentarei... Descobrirei... mais uma vez!... Não vou... desistir dele..." - continuou Gabriela a "escutar" a rapariga do outro lado.

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