Rafael Braga

O efeito do defeito - Mateus

Parte 4
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     - Mateus? - tentou Célia chamar a atenção dele.
     - Que se passa com ele? - perguntou Maria.

     Célia segurou os braços de Mateus e agitou-os com delicadeza.

     - Mateus!
     - Sim - respondeu ele, de volta à realidade.
     - O que lembraste?
     - Mãe, não foi esta rapariga em si que me fez delirar. Foi o pai! As lembranças do pai.

     Célia baixou os olhos e ergueu-os novamente para Mateus.

     - Falaremos disto mais tarde. Em casa, sim? - prometeu ela.

     Maria não entendia o que se passava. Entretanto, recebeu uma chamada.

     - Preciso de ir para o Hospital. A minha irmã recebeu hoje alta médica. Desculpem-me.
     - Maravilhoso - disse Célia com um sorriso - Vem connosco.
     - É muito gentil da vossa parte - Maria não tinha outra escolha senão em aceitar. Levaria muito tempo a chegar ao Hospital a pé e estava a entardecer.
     - Vem, queremos conhecer a tua irmã - disse Célia.
     - Muito obrigado - agradeceu.

     Entraram todos no carro. Durante a viagem, Mateus continuava a matotar nas lembranças do pai.

     Certo dia, em casa, Mateus está no seu quarto, isolado de todos. A sua cabeça fervilha de dores e emoções, memórias que prefere esquecer e que não o consegue fazer. Nesse momento, o seu pai entra.
     - "Filho? Posso?"
     - "Sim."
     - "O pai pode não ser médico como a mãe, nem ter uma profissão de respeito... Mas sabes que sempre te adorei. E adoro."

     Mateus nem olha.

     - "A mãe contou-me o que se passa contigo." - diz, ao sentar-se perto de Mateus.
     - "Mas não entendes o que se passa comigo, pois não?"
     - "Entendo sim, agora."

     Os dois permanecem em silêncio alguns minutos.

     - "Estarmos todos zangados não vai resolver nada..."

     Mateus olha cuidadosamente para o seu pai. O rosto dele é triste e sereno.

     - "Tenho um segredo para te contar." - a voz do seu pai é calma e verdadeira - "Quando era mais novo, os meus pais discutiam a toda a hora. Numa noite, o teu avô descarregou a ira sobre mim. Bateu-me como nunca o havia feito. Então, fugi de casa. Eu tinha um dom. Sonhava quando escrevia. Sonhava exactamente com o que escrevia antes de adormecer. Ao início era bom. Mas entusiasmava-me tanto que às vezes não tinha cuidado com o que escrevia..."
     - "Porque nunca me contaste isto antes?" - pergunta Mateus atento.
     - "Ouve. Entrei em paranóia com maior parte dos sonhos. Nenhum deles se realizava. Não passava tudo de mentiras e imaginação. Comecei a beber antes de adormecer. Nessas noites nunca sonhava. Infelizmente, não me controlei o suficiente... e entrei num ciclo de vício."
     - "Oh pai..."
     - "Nunca contei isto a ninguém, nem mesmo à mãe."

     Mateus sente empatia entre a pena. Finalmente encontrou algo em comum com o seu pai.

     - "Quando ela me contou o que se está a passar contigo, vi em ti o que via em mim. E agora entendo-te, filho. Existem coisas inexplicáveis. Mas existem. Um dia encontrarás uma forma de privar esse teu dom, se precisares, mas nunca abuses de ti próprio. Não corras o mesmo risco que eu."
     - "Agora percebo, pai. Mas isto não pode ser considerado um dom..."
     - "Um dia descobrirás que pode."

     O carro parou. Mateus voltou à realidade e apercebeu-se que se encontravam no parque do Hospital e era praticamente noite. Maria apressou-se a sair do carro. Célia olhou para Mateus.

     - Conta-me Mateus - pediu a mãe.

     Mateus tirou o cinto e colocou a mão no puxador da porta. Hesitou.

     - O pai tinha o mesmo problema que eu... - soltou, desabafando - Ou parecido. Foi dele de quem tirei a ideia de consumir alcóol para me livrar dos problemas... Não quero falar disso agora... - Puxou o puxador da porta e saiu do carro.

     Célia respirou fundo. Inconformada.

     Ao balcão da recepção, Maria deu os seus dados pessoais em troca de um cartão visitante.

     - Boa noite, Dr. Célia - cumprimentou a recepcionista.

     Todos subiram para o terceiro andar. Maria à frente. Ao fundo do corredor estava um médico.

     - Boa noite, Dr. Célia.
     - Boa noite, Dr, Jorge.

     Os dois médicos olharam-se no corredor, afastados, com uma leve desconfiança no rosto de cada um.

     - Como está a minha irmã? - perguntou Maria, impaciente.
     - Podem entrar. Ela é uma menina muito forte, superou as espectativas de todos - disse o médico.

     Uma enfermeira acabava de vestir a menina com um casaco branco. Maria entrou e abraçou a sua irmã. Mateus ficou à porta, encostado.

     - Manaa! - gritou a pequena.
     - Olá Carolina, sentes-te melhor?

     Mateus ouviu o nome da menina. "Carolina". Pareceu-lhe famíliar. Mas ver o rosto da menina foi como uma faísca que desencadeou uma outra lembrança.

     Apenas amigos de família do seu amigo Gonçalo está presente no funeral. Mateus e Célia assistem um pouco mais afastados. Todos fazem um momento de silêncio em memória de António Fernandes, - o pai - Augusta Fernandes, - a mãe - e de Adriana Fernandes - a irmã. Durante o final da cerimónia, enquanto todos sussurram sobre as mortes e o incidente, uma menina triste aproxima-se do lugar que simboliza a pequena Adriana. Mateus memoriza-a sentimentalmente. A pequena, ajoelhada, coloca uma flôr branca no relvado, junto à pedra.

     - "Vamos, Carolina" - chama uma rapariga mais velha.

     Mateus sobressaltou ao pé da porta. "Fora Maria quem havia chamado pela menina da flôr..." - pensou. "Ambos estivemos no funeral dos pais do Gonçalo." Ao pensar no nome do amigo, entristeceu.

     Relembrou, também, tê-lo visto fugir há algumas horas atrás, se não fosse imaginação sua.

     - Esta é a minha irmã, Carolina - disse Maria.
     - Olá - cumprimentou a pequena de sorriso no rosto.
     - Prazer em conhecer-te. O meu nome é Célia - apresentou-se a mãe de Mateus.

     Mateus olhou para o resto do quarto. Numa mesa pequena junto à cama havia uma jarra. Dentro, em água, estava uma flôr branca.

     - Olá - dirigiu-se Carolina para Mateus.

     Mateus voltou o olhar distraído e deu atenção à pequena.

     - Olá, como estás? - perguntou.
     - O médico disse que estou melhor e que posso voltar para casa - disse Carolina, terminando a frase com receio - Não és o menino que estavas no funeral da minha amiga Adriana? - perguntou inocentemente, com uma voz doce.

     Mateus sorriu. Parecia coincidência a troca de memórias.

     - Conhecias a Adriana? O irmão dela era meu amigo também.
     - Sim... - respondeu entristecendo. O seu rosto parecia transmitir lembranças. Uma mais aterrorizante em concreto.
     - Vamos para casa? - propôs Maria.

     Todos se despediram. Maria e Carolina permaneceram no Hospital por mais algum tempo.

     Mateus dirigiu-se para o carro. Célia seguia-o. Ao desviar o olhar, Mateus pressentiu alguém perto no parque. Seguiu o olhar nas sombras criadas pelas luzes dos candeeiros entre o muro e os automóveis. Das sombras saiu uma pessoa. Mateus tentou identificar.

     - Gonçalo! - gritou Mateus.

     A pessoa parou e olhou na sua direcção e, num segundo, desapareceu nas sombras. Mateus correu na direcção mas não havia mais ninguém. "Será mesmo verdade!", pensou ele, irritando-se consigo próprio. "Porque haveria ele de fazer isto?!".

     - Mateus? - chamou a mãe.
     - Eu tenho a certeza que era ele...
     - Foi a mesma pessoa que viste hoje? - perguntou convicta da situação.

     Mateus não sabia o que fazer. Não sabia o que falar. Havia tanto na sua cabeça para descarregar.

     - Talvez estejas a delirar por ele, filho. É muito improvável que ele tenha fugido do Hospital. Tu mesmo viste a ficha médica. Tu mesmo viste o estado dele...
     - Não sei, não sei... - Mateus sentia-se cansado e infeliz.

     Célia colocou a sua mão no ombro de Mateus.

     - Vamos para casa. É tarde...

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