Rafael Braga

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 2
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- Há cinco meses atrás: -

     - Gonçalo, vá lá, vai deitar-te. É tarde.
     - Vou já, mãe. É só mais este programa - disse ele numa voz sonolenta.
     - Não te esqueças de desligar a televisão, sim? - pediu o pai enquanto se levantava do sofá.
     - Prometo, desta vez.

     Gonçalo aconchegou-se no mesmo sofá com mais discontracção ao ouvir a permissão dos pais.

     - Posso ver com o mano, mamã? - perguntou a sua irmãzinha.

     A mãe torceu o nariz em desaprovação.
     - Não, querida. Amanhã deves acordar cedo, sabes porquê?
     - Porque amanhã vamos à escola! - sorriu a menina ao responder.
     - Sim, vamos te inscrever para que não tarda possas aprender como os outros meninos.
     - E vai estar lá a Carolina também?
     - Sim, claro, filha.
     - Boa! - contentou-se.

     A menina apressou-se a subir as escadas em direcção ao seu quarto. Pausou por um momento.

     - Mano! Amanhã vou para a escola como tu e aprender mais! Ahah - gracejou num tom doce de entusiasmo.

     Gonçalo observou a irmã por cima do ombro e deitou a língua de fora. Depois sorriu virado para a televisão.
     - Boa noite! - gritou a pequena correndo pelas escadas.
     - Boa noite, filho - despediu-se a mãe.
     - Boa noite.

     As luzes foram todas desligadas.

     - Pai? - chamou-o antes que subisse também - Emprestas-me o carro para o próximo fim-se-semana? - Gonçalo fez um ar de esperanças sobre o seu pai, na tentativa de o convencer daquela vez.
     - Acho que já discutimos sobre isso.
     - Vá lá, pai - insistiu.
     - Não é por saberes conduzir com cuidado que te dê a responsabilidade de o fazer.
     - Eu sei, pai, mas seria importante para mim. Todos os meus amigos vão levar o seu carro. E eu prometo que não abusarei nem beberei nenhuma bebida. Prometo!

     O pai lançou um olhar pensativo.
     - Mas só desta vez...
     - Obrigado pai! - agradeceu Gonçalo, emocionado - És o melhor pai do mundo!

     Subiu em seguida para se deitar, igualmente. Gonçalo permaneceu na sala. O programa televisivo prolongou-se mais duas horas. A essa altura todos dormiam descançados. O silêncio reinava a casa.

     O andar de baixo da casa emanava um fumo negro pelas escadas e condutas acima.
     O andar de cima ardia infernamente.

     Um grito agudo e aflitivo percorreu a casa como um alarme. Gonçalo acordou sobressaltado!

     A sala de estar no andar de baixo, onde relaxado tinha adormecido a ver televisão, enevoeirava um manto denso e sofucante de fumo sob o tecto. As sombras luminosas das chamas erguiam-se e desapareciam em clarões fervorosos nas paredes da sala até à cozinha, grunhindo ruídos típicos de um incêndio alastrado.

     Levantando-se abalado, correra em socorro da sua família.

     - MÃE! - gritou em desespero...

     Por entre a invisibilidade e a escuridão subiu as escadas até aos quartos. As paredes rachavam com o próprio peso. A primeira porta à direita dava acesso ao quarto dos pais...

     - PAI! - gritou uma vez mais...

     As chamas deflagravam o quarto impiedosamente. O tecto deste rugiu, no instante em que desabou sobre o centro projectando centenas de lascas e farpas incandescentes numa bola de fumo e destroços. Gonçalo esquivou-se no último instante, atirando-se para o chão protegendo a cabeça com os braços.
     O calor mordia-lhe as pernas. Vociferava em ardor. O seu pijama estava em chamas. Rebolou o corpo sobre si mesmo e esfregou com a mais freneticidade que as suas mãos lhe conseguiam oferecer para afastar as chamas. Usou de seguida a carpete com que se enrolou para abafar as mesmas.

     Ergueu-se apoiando o ombro na parede. Tossia por ar fresco. Gonçalo persistiu ainda pelo último quarto, gatinhando pelo corredor junto o mais possível ao chão, onde o fumo não era tão denso.

     "Por favor...", disse, suplicando em sofrimento. A porta estava fechada. O calor irradiava uma luz esplandorosa por entre as frinchas, parecendo sufocar-se dentro do quarto. O nome "Adriana" estava pendurado na porta. Levantando-se, cansado e quase incapacitado pelas dores das queimaduras, abriu a porta rápido de mais...

     O fumo negro que pairava no corredor entrou pelo quarto em chamas como uma serpente viva e feroz. Houve um momento de explosão. A pressão do ar quente descomprimiu-se e alastrou-se pelo corredor num ápice, arremessando Gonçalo contra a porta do seu quarto, oposto ao do da sua irmã. Ouviram-se estilhaços de vidros de janelas quebrarem-se e lascas de madeira trespassarem tecidos e paredes. As altas temperaturas bastavam para queimar a pele.

     Por fim, Gonçalo fora vencido pela natureza da sobrevivência. O seu instinto levou-o mais uma vez a resistir. Não havia mais nada em que podesse pensar. Entrou no seu quarto, arrastando-se debilmente. As chamas tinham encontrado um novo lugar para consumirem. Içou o seu corpo, apoiando-se sobre a cama, depois contornou-a e aproximou-se da janela. Esta estava aberta.
     Era uma noite escura. Ouviam-se gritos de desespero dos vizinhos. Sirenes sonoras de bombeiros chegavam do horizonte. Uma bizarra loucura que enchia o peito de medo e sofrimento.

     Gonçalo não hesitou. Olhou a estrada e saltou para se salvar.

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