Rafael Braga

O efeito do defeito - Gonçalo

Parte 1
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     - Sabes que não podes voltar a casa!
     - Não me digas o que eu não posso fazer! - respondeu gritando. Gonçalo retirou um pequeno saco debaixo de um colchão velho. Dentro continha uma quantia valiosa em dinheiro. - Isto deve chegar.
     - Hei! Esse dinheiro também é meu! - reclamou o seu companheiro.
     - É a única maneira de eu voltar para casa...

     Gonçalo sentou-se no colchão puído que rangeu sobre as molas. Vestia com ele roupas velhas e desfeitas. Vivia com um sem abrigo de nome Fábio que o ajudou a sobreviver nas ruas. Ambos roubavam em troca de alimentos e novas roupas. Dormiam por vezes em casas abandonadas ou em ruas por onde ninguém passava. Os dois estiveram juntos praticamente quatro meses.
     Precisava de voltar a casa.

     - Já passou tempo necessário...
     - Estás maluco dessa cabeça? Tu lembras o que aconteceu há cinco meses? A polícia ainda deve andar em cima de nós! Atropelamos uma menina com um carro roubado!

     Gonçalo permaneceu petrificado.

     - Para não falar que fugiste do Hospital! Ainda me custa acreditar o que te aconteceu... - Fábio agachou-se perto do amigo - Tu tiveste muita sorte, se é que se possa chamar de isso.

     Gonçalo relembrou.

     Numa noite de Agosto, um terrível incêndio havia destruído o seu lar e família. Gonçalo na tentativa de escapar correra pela casa em chamas, atirando-se num acto impensável da janela de um quarto para a rua para se salvar. A queda tinha sido quase fatal. Permanecera inconsciente, deitado na fria estrada, até ter sido resgatado pelos bombeiros e ser levado para o Hospital. Seus pais tinham morrido sem se terem apercebido da catástrofe, contavam os polícias.
     Milagrosamente o seu corpo sarava numa rapidez exponencial. Testes sobre testes, estava a ser submetido a um desumano interesse próprio de médicos cientistas. Eles queriam respostas a todo o custo. Gonçalo vira-se na necessidade de fugir e se esconder.

     - Tive muita sorte mesmo, foi em te ter encontrado. Havemos de ajudar de alguma forma a família da menina... - ressentiu Gonçalo.
     - Se é a tua vontade a de voltar, força. Mas eu não posso. Ainda tenho assuntos pendentes aqui.
     - E eu voltarei para te ajudar. Havemos de terminar esses "assuntos" um dia.

     Fábio sentou-se por fim no chão.

     - Tu conhece-los. São osso duro de roer e não nos vão deixar descançados nunca...
     - Arranjaremos uma forma - aliviou Gonçalo - Tenho que partir já.

     Fábio levantou-se energeticamente, ofereceu a sua mão ainda coberta de ligas manchadas e ajudou Gonçalo a levantar-se também. Os dois cumprimentaram-se à maneira das ruas.

     - Podes levá-lo todo. Não vou precisar desse dinheiro.
     - Fico-te agradecido. Devolver-te-ei.
     - Espero bem que sim - disse Fábio, sorrindo - toma cuidado.
     - Sabes bem que eu não preciso ter cuidado.
     - Mas é sempre educado da minha dizer isto - piscando o olho.

     Gonçalo meteu ao bolso o pequeno saco com o dinheiro e pegou num casaco preto que havia sido roubado a semana passada. Saiu pela porta das traseiras da casa ainda em obras e seguiu a estrada em direcção à estação ferroviária.

     A noite estava calma. Poucos automóveis circulavam nas ruas dos bairros. Gonçalo caminhava decidido e confiante pela ruela abaixo, faltando mais uns quatro quarteirões até à estação.
     - Não é possível! - gritou um indivíduo entre um grupo de seis.
     - Devias estar morto!

     Gonçalo hesitou e parou. Quando se apercebeu do perigo já o grupo lhe barrava a passagem.

     - Meu! Eu enfiei-te duas balas nesse peito! - afirmou o mais corpulento e líder do grupo, dando um passo à frente.
     - Talvez nem tenhas acertado - Gonçalo respondeu audazmente.
     - Estás a tripar comigo? Ah? - alteou a voz aproximando-se mais.
     - Não, MD, estou só a dizer que falhaste os tiros.

     Gonçalo tinha que arranjar um forma de escapar ao bando. Estava em desvantagem desta vez. Ao fundo da ruela um carro de patrulha parou à saída com as luzes ligadas. O grupo não entrou em pânico mas a presença da polícia alertou-os. Dois capangas separam-se do grupo para encostarem-se à vedação de um terreno, folgando um espaço para Gonçalo se esquivar.

     - Estás mesmo a tripar comigo, filho da p...!
     - Merda MD, a bófia! - sussurou um outro.
     - Fodasse! - praguejou - Mas nem a bófia te salva o couro desta vez. Tu e o teu amiguinho ainda me devem os cinco mil! - continuou furioso.

     O medo abraçava o peito de Gonçalo. O carro de patrulha não parecia ter reparado neles, continuando o seu caminho.

     PAAAM! Ouviu-se um disparo tremendo. Tanto Gonçalo como o bando agacharam-se em protecção. O carro de patrulha ligou imediatamente as sirenes sonoras e dirigiu-se para a ruela. O bando dividiu-se, cada um por si, e fugiram em várias direcções. Gonçalo correu velozmente saltando a vedação atravessando as propriedades vizinhas para escapar à polícia. Continou a correr até ter deixado de ouvir as sirenes.

     - Porra! - queixou-se ao golpear-se na segunda rede, esta farpada. O sangue escorreu em segundos pelo braço até à mão, manchando o casaco preto.

     Ao chegar à estação, apressou-se para as casas de banho públicas sem que alguém reparasse. Tirou o casaco e atirou-o para o chão. O corte no ombro era pouco profundo mas as dores eram mais. Lavou o ombro durante alguns minutos até que o sangue estancou. A ferida cicatrizou-se aos olhos de Gonçalo que observava pelo espelho sujo na parede. Por mais vezes que ele assistisse ao mesmo fenómeno, Gonçalo deixava-se impressionar pela incompreensibilidade.
     Por fim enxaguou a manga do casaco, tirando o sangue e o odor.

     O comboio que esperava chegou à estação. Partia em dez minutos. Escolheu um lugar numa carruagem mais vazia de gente. Um operário aproximou-se.
     - Bilhete, por favor?
     - Ahh... - figindo se ter esquecido apalpou os bolsos. Retirou algumas moedas do bolsoe contou - Não tenho bilhete...
     - Da próxima vez tem que o comprar na bilheteira. Destino?
     - Braga - respondeu Gonçalo.
     - São 2,50€. Boa viagem.

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