Rafael Braga

O efeito do defeito - Mateus

Parte 3
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     - Não tem sido fácil, sabes? O Mateus é simplesmente uma dádiva. Tenho cumprido a promessa que te fiz. O teu filho tem crescido muito e fez muitas asneiras. Mas o que tu lhe chamavas de dom está a tornar-se cada vez mais um fardo, para ele e para mim... - Célia abriu os olhos e deparou-se com o tecto do seu quarto. Um quarto vazio mas suscito de algumas recordações. Uma pequena moldura segurando uma fotografia de casamento e uma outra mais jovem na parede de frente para a cama - Sinto a tua falta. E ele também...

     Mateus descansava no seu quarto. Ao lado da cama havia uma enorme estante repleta de livros de ensino e variados. Todos eles lidos e etiquetados pessoalmente. No lado oposto havia uma mesa onde estava o portátil ligado, mais uns quantos livros e alguns CD's de música abertos recentemente... Deitou-se na cama e colocou os auriculares nos ouvidos. "Conseguirei memorizar muitas mais músicas? Talvez nem venha a precisar mais deste leitor...", pensou Mateus.

     "Hoje à noite conhecerei a rapariga que há muito tempo terei visto inconsciente. Há precisamente cinco meses e dois dias. Sinto-me nervoso. Tenho medo de a ver e não conseguir assimilar que seja verdadeira e real. Quão será ela diferente dela própria na minha versão imaginária? Terá a mesma personalidade? Não, é impossível." - Mateus pensava questionadamente. Mal prestava atenção às músicas que no entanto a sua mente as absorvia numa fluidez competente. Nenhum pormenor escapava à sua capacidade de reter memórias objectivas.

     "Que efeito terá ela em mim, que na primeira vez que nos cruzamos me deixou assim? Será que sentirei esse efeito novamente, como o sinto nos meus sonhos?" - Mateus continuava a interrogar-se - "Maldita hora em que decidi beber. Mais cedo ou mais tarde o alcóol não limitaria o meu dom, estavas errado pai..."

     Mateus levantou-se da cama.
     Célia já se encontrava na sala a arrumar o seu casaco para sair.

     - Vamos Mateus. É hora de irmos.

     Não disse uma palavra.

     Os dois entraram no carro e colocaram os cintos. Os portões abriram-se automaticamente. Assim que passaram os portões, Mateus olhou de relance para o fundo da rua e viu alguém que caminhava no sentido oposto. Era-lhe famíliar. O andar, o movimento da locumoção, a roupa. Era o seu amigo Gonçalo. O seu amigo de infância que todos pensavam ter desaparecido.

     - Pára o carro, mãe! - gritou brutalmente.

     O carro mal havia parado. Mateus desatou a correr em direcção ao amigo que virou imediatamente por um corte entre vedações. Tentou segui-lo mas ao chegar tarde ao corte o amigo já havia desaparecido. Correu até ao outro lado na chance de o reaver. Nada. Acalmou a respiração e voltou para trás, olhando pelo ombro para os lados. Célia veio ao seu encontro.

     - Que passou? O que viste?
     - Nada mãe, estou a elouquecer!

     Célia observou-o com um olhar reprovador pela expressão dita.

     Os dois voltaram ao carro e Mateus não falou sobre o assunto o resto da viagem. Apenas pensou para si próprio como o sempre fez.

     A viagem não foi longa.
     Estacionaram o automóvel no parque perto da morada onde vivia a rapariga com que imaginava. Era uma casa simples num bairro aparentemente sossegado. Mateus não tirou o cinto. Apenas olhava pela janela para a casa do outro lado da rua, pensativo.

     - Queres falar-me primeiro do que aconteceu há vinte minutos atrás?
     - Mais tarde - respondeu conformado - Pode ser?
     - É justo. Sei que não queres adiar este momento.

     Mateus baixou o olhar até aos joelhos.

     - Sinceramente... Não tenho a certeza.
     - Disseste-me que seria importante para ti se te interligasses com a rapariga. Esta é a altura. E eu estou aqui para te ajudar. E eu falarei a maior parte do tempo.

     Célia sorriu. Os dois saíram do carro em direcção à porta da frente. Mateus olhou para o lado, atencioso para um pequeno jardim de flores brancas.

     - Quem é? - perguntou uma voz masculina após terem batido à porta.
     - Sou a Dr. Célia da Neurologia na cidade e este é o meu filho Mateus. Gostariamos de falar com a sua filha se fosse possível.
     - A minha filha não está!

     Ambos olharam-se. Mateus sentiu um choque breve de memórias. Célia insistiu.

     - Poderia combinar-nos uma hora para que nos podessemos encontrar com ela?
     - Não! - respondeu o homem, grosseiro - E mesmo que ela estivesse em casa também não a deixaria falar consigo. Vão-se embora!

     Célia não insistiu e virou costas.

     - Que rude!

     Mateus nem deu atenção e voltou para trás. Ao chegar perto do automóvel algo o surpreendeu.

     - Querido? - perguntou a mãe.
     - Há quanto tempo não nos temos visto até agora? - perguntou ele para a rapariga que se encontrava escondida do outro lado do carro.
     - Desculpa? - perguntou confusa.

     Célia não se aproximou mas permaneceu cuidadosa.
     - Estou a vê-la, meu querido. É real. Não estás a imaginar...

     Mateus tornou-se eufórico por dentro. Quase incrédulo. Mas seguramente lúcido. Ficaram quietos por uns intantes.

     - Desculpem o meu pai. Ele fica um pouco rabugento quando bebe demais - disse a rapariga olhando para Mateus, quebrando o silêncio.

     A rapariga virou os olhos num acto de reflexão. Voltou-os para Mateus e por fim, reconhecendo-o, aproximou-se dele.

     Ele continuava perplexo e sem fala. Algo na sua cabeça funcionava à velocidade da luz. Até que, instantes depois, cessou. Nada havia para pensar.

     - Mateus? - chamou a jovem numa voz doce.

     Mateus engoliu em seco.

     - Como sabes o meu nome? - perguntou, tentando lembrar-se das vagas memórias.
     - Tu disseste-me o teu nome, lembras? E que irias ajudar-me a encontrar a minha irmã.
     - Desculpa-me, mas não faço mesmo ideia do que aconteceu nem me recordo de absolutamente nada. Eu nem sei o teu nome...
     - Que se passa contigo? - perguntou a jovem num tom leve de fúria - Naquela noite parecias hipnótizado ou algo do gênero. E o que falavas não fazia sentido nenhum. Mas...

     Célia aproximou-se interrogada.

     - O que falava ele? - interrompeu.
     - Mas... Quem é a senhora?
     - Sou a mãe do Mateus. Por favor. O meu filho precisa da tua ajuda para recompôr as peças que lhe faltam dessa noite. É importante sabermos o que ele falou ou fez nessa noite.
     - Tem amnésia o seu filho?
     - Não. É mais... diferente - Célia tentou abrir-se com o "assunto" mas tornaria a conversa mais incompreensiva.

     A rapariga repensou no que iria dizer. A palavra "diferente" tocou-lhe como um sino de metal nos ouvidos. Respirou e continuou calma.

     - Ele simplesmente tornou-se diferente em segundos. Num momento estava a tentar ajudar-me e logo a seguir começou a falar coisas estranhas. Que eu não era real.

     Mateus apercebeu-se. As peças estavam a encaixar-se. Algo fazia sentido para ele.

     - Eu estava aflita e nervosa e não quis perder mais tempo. A minha irmã tinha sido atropelada momentos depois... - a rapariga baixou os olhos, quase em lágrimas.
     - Lamento imenso... - lamentou-se Célia.
     - Ela está a recuperar, felizmente - sorriu leve - O meu nome é Maria.

     Mateus olhou instantaneamente o vazio quando sentiu um outro choque de memórias.

     Nelas, ele encontra-se embriagado pela cidade como todas as noites naquela altura. Há uma rapariga com quem se cruza na escuridão, Maria, desesperada em busca da sua irmã pelas ruas. Ele tenta acompanhar e entender o que ela soluça em palavras.

     - "Calma, respira fundo. Como te chamas?"
     - "Maria... Por favor, ajuda-me a procurar a minha maninha!"
     - "Maria, sou o Mateus. Que se passa?"
     - "A minha irmã fugiu de casa... Porque... os meus pais discutiram... e ele bateu-lhe..."
     - "Meu Deus... Maria, onde achas que ela pode ter ido?"

     É aí que o seu alcoolizado raciocínio entra em colapso.

     - "Tu não és real!" - afirma Mateus.
     - "Ah? O que disseste?"
     - "Tu não és REAL!"
     - "Eu sou real Mateus. O que se passa contigo?"
     - "Tu não existes, o meu pai sempre me disse!"
     - "O teu pai? Desculpa, não posso perder mais tempo..."

     Pelos prédios da avenida ouvem-se o chiar de pneus de um automóvel descontrolado... E a memória termina.

     Mateus completou as suas memórias escondidas. "Não foi esta rapariga, Maria, ou algum efeito que ela tivesse em mim, que me fez despertar os delírios. Foram as lembranças do meu pai..." - reflectiu.

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