Rafael Braga

O efeito do defeito - Mateus

Parte 2
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     Doutora Célia prendeu o seu cabelo longo e loiro em rabo de cavalo. De um dos bolsos da bata branca que vestia tirou um bloco de notas que pousou na secretária do seu consultório. Mateus estava sentado na maca de paciente. Olhava o vazio pela janela.

- Descontrai Mateus - acalmou a doutora, estendendo-lhe a mão com dois comprimidos - Estes devem te dar mais quatro dias, infelizmente.

     Mateus tomou-os num acto mecânico.

- Os resultados chegaram hoje. Aparentemente o teu corpo está saudável. Mas o exame neurológico, até para mim, é novamente um milagre. Avassalador - continuou a doutora.

     As palavras nem tocaram a atenção de Mateus.

- Compreendes o que eu te estou a dizer? - perguntou forçando um pouco mais.
- Que eu sou esquisito? Que tenho problemas?

     Alguns segundos de silêncio separaram os dois.

- Não sabemos até que ponto as tuas "capacidades" podem ser boas ou maléficas. No entanto, contrariamente e acima de tudo, de acordo com os meus conhecimentos e estudos, o teu comportamento psicológico não é deveras natural como qualquer outra pessoa. Pesquisei nos mais fundos historiais de pacientes que nem por sombras experienciaram algo como tu.

     Mateus levantou um sobrancelha ironicamente. A sua língua ainda sentia o sabor estranho dos comprimidos.

- O que é certo é que ultimamente te tem atingido os sentimentos. E isso pode agravar-se se te deixares levar pela irrealidade. Podes vir a perder o teu próprio consciente e coerência. A tua âncora novamente.
- Não é algo que eu possa controlar totalmente. Isto vive comigo. Não me larga um minuto - Mateus pausou - E... também não vejo outra forma de viver sem isto. Mas... - pausando mais uma vez - a rapariga que fala comigo, ela é diferente. É como um outro eu, feminino.
- Quero que compreendas o que eu te vou repetir...
- Que ela é imaginação minha e que possui uma personalidade que eu criei inconscientemente. - interrompreu citando palavras antigas - Mas é tão real a sensação e a proximidade...
- Sentes que estás apaixonado por essa entidade, mesmo que por pouco tempo passado com ela.

     Mateus fechou os olhos. Pensou na maior tolice que poderia existir. Como poderia algo ser comparado ao que estava a acontecer consigo. Estar simplesmente apaixonado por alguém que não existia. O seu cérebro funcionava como um turbilhão de informações e imagens. Não o conseguia controlar como antes. Tudo na sua cabeça parecia querer ser resolvido e encontrar um lugar.

- Calma - disse a doutora - Não forces. Deixa processar. Relaxa.
- De onde vem esta música?

     A doutora concentrou-se mas tudo o que ouvia eram pessoas a conversarem no corredor.

- Música? - perguntou.

     Mateus apercebera-se de que estava a ouvir uma melodia familiar, de um momento na sua infância. Era uma música bela e instrumental. Estava a ouvi-la na sua mente apenas. Reflectiu.

- Doutora - perguntou admirado - é possível que as memórias possam reproduzir sons? Assim como as imagens que eu posso imaginar?

     A pergunta afectou de alguma forma o raciocínio da doutora Célia que ponderou nessa possibilidade.

- Estás a perguntar-me se a música que dizes escutar é uma memória? - e então questionou-se a si própria - "Impressionavelmente seria um avanço nas capacidades neurológicas, mas música?"
- Sim! Estou a ouvir uma música que já não ouvia há bastante tempo! - Mateus sorriu e riu.
- Bem, teoricamente seria possível...
- Podemos tentar um teste como aquele que fizemos para a minha memória fotográfica - incentivou.

     Mateus estava obviamente estimulado pela nova experiência, ao invés da passada anterior, que até se rejeitava a tomar a iniciativa de um treino mental. "Só a música poderia seriamente alterar o rumo de decisões de um adulescente de dezanove anos. Mas... até que ponto novas capacidades lhe proporcionarão tamanho bem-estar? E se novas habilidades mentais se somarem ao problemático delírio imaginário?" - pensou a doutora.

     A sala de experiências emanava odores mais intensos que no resto da clínica. Tratava-se de um laboratório específico e especializado apenas para Mateus. Como algo confidêncial.

- Bem - pousando a sua mão no ombro dele resumiu - Da mesma forma que testamos as imagens, faremos o mesmo processo desta vez com músicas. Apartir deste computador ouvirás três músicas. Se tudo correr bem conseguirás memoriza-las facilmente - ambos sorriram cruzando olhares - A seguir testaremos as tuas ondas cerebrais e diagnosticarei se realmente são melodias recriadas apartir da memória. Alguma questão?
- Não - respondeu seguro.

     Mateus ouviu a primeira música. Não fez qualquer tipo de esforço, apenas se concentrou na canção. Passou à seguinte. A meio desta desligou o programa.

- Passa-se algo de errado? - perguntou a doutora levantando-se do outro lado da sala.
- Não. Acho apenas que não serão necessárias três músicas. Enquanto tentava escutar a segunda, eu fui capaz de reproduzir a primeira.
- Admirável - disse a doutora unindo as mãos. Deu um salto até perto dele e ligou-lhe a sonda cerebral na cabeça. O computador abriu automaticamente um programa de imagens gráficas e o cérebro de Mateus preencheu o ecrã. A imagem apresentava multiplas zonas coloridas que especificavam uma determinada tarefa a ser cumprida pela cérebro. E todas elas reluziam e piscavam a toda a hora sem parar.
- Extraordinário - espantou-se a doutora ao examinar as imagens no computador - na realidade o teu sistema reutiliza a informação ligada à memória e transporta-a para o nervo auditivo que por sua vez reproduz o som e convertido por fim no lobo temporal...

     A doutora sentou-se ao seu lado, continuando a examinar as imagens e a ampliar certas zonas. Os dois trocaram impressões e ideias.

- Não sei como és capaz ou porque o teu cérebro é capaz. Não há explicação.
- É tão fácil para mim. É como se tivesse crescido a fazer isto. Quer dizer, descobri esta nova capacidade à cerca de uma hora - ironizou.

     Doutora Célia retraiu-se nas costas da cadeira com o olhar posto no ecrã da máquina. Era um olhar de admiração que escondia um outro sentimento. Era um olhar de surpresa.

- Com estas provas que me tens dado, Mateus, eu deduzo que sejas capaz de muito mais. O cérebro humano poderia ser capaz de tudo se não fosse limitado. Mas o teu, o teu não é limitado. De algum modo, ele é alterado.

     Olhou Mateus nos olhos.

- Possuis uma mente revolucionária no que toca a aprendizagem e memória. Consegues com o mínimo de concentração alcançar lembranças com tanta nitídez que para a maioria só lhe é possível sendo hipnotizada ou drogada.
- E agora sou um gravador de CD's - divertiu-se Mateus rindo.
- Não deverias encontrar tanta diversão num assunto como este - a sua cara tornou-se mais séria e desaprovadora - Teremos que estar mais prevenidos e mais atendos ainda quanto ao teu desenvolvimento. Nunca saberemos o que te pode vir a acontecer. Não estou preparada para este tipo de condições.

     Mateus entendeu a mensagem e arrependeu-se, tomando mais atenção às palavras da doutora.

- Farei o que for necessário para que não percas o teu controlo e para que eu não tenha que vir a dar o meu nome a uma futura nova doença...

     Mateus olhou-a no rosto de sinceridade.

- Obrigado mãe.

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